Escritos de Eva

Aqui Eva escreve o que sonha e - talvez - não só. Não tem interesses de qualquer tipo nem alinhamento com sociologias, política, religião ou crenças conformes às instituições que conhecemos. Estes escritos podem servir de receita para momentos de leveza, felicidade ou inspiração para melhorar cada dia com bons pensamentos. Alguns poemas ou textos... Algumas imagens ou fotos... Mulheres e homens, crianças e idosos podem ler Eva e comentar dando a sua opinião.

2006-10-31

O veleiro

31 de outubro de 2006

Era uma barco cheio de miudagem meio esfarrapada. Um barco grande, à vela.

Não um veleiro moderno, mas antigo. Fazia lembrar os de escravos.
A miudagem comia e atirava-se ao colo ou ao lado dos marinheiros, também de mau aspecto. Aspecto de muitos - demasiados - dias em alto mar.
Dias de ninguém, que são para esquecer. Esquecer as necessidades sentidas.

Dias de esquecimento pelas atitudes de menos, que foram tomadas.
Atitudes meio tresloucadas quando revistas com calma e bem estar mental.
Mas o mar, como o deserto, ou a neve, ou a chuva sem parar, transtornam a mente.

Fazem surgir o que há de mais podre em cada um.
No barco a comida escasseia, mas o vento sopra bem as velas e a velocidade vai ajudar a encontrar terra, comida e água doce.
Os homens, como as crianças, odeiam-se e querem-se sem razões, mutuamente.

São a infelicidade uns dos outros. Uma morte do íntimo de cada um.
Uma agonia lenta.
Os dias sucedem-se, soalheiros e tempestuosos. Ilhas e nevoeiro ao longe.

A visão de terra firme obriga-os a arriscar-se nessa direcção cinzenta.
Chegam a ilhas e decidem dar-se uns aos outros a oportunidade do esquecimento do passado e a esperança de um futuro melhor.
A miudagem fica naquela ilha mais florida e variada, pois tem o mar, mas tem também serras e flores em todo o lado.

Até nas ondas vêm flores para deslumbrar as areias.
Os marinheiros vão para a mais longínqua que tem forma de península.

Parece maior, com espaço para eles. sem se atropelarem.
O barco vai afundar-se perto dali e vai tornar-se apenas um momento da enormidade que não é para repetir.
Em hipóteses semelhantes, todos vão ter que ultrapassar problemas.

Mas, sobretudo, superar-se a si próprios e aos seus pesadelos.
Todos desejam sonhos de paz. Finalmente!
Finalmente vão poder renascer em si e na natureza serena que agora os envolve.

2006-10-30

Sem título nem medida

30 de outubro de 2006

Janela ampla de hotel. Rua sossegada, jardins interiores e exteriores.
Falta dos lugares rotineiros. Dos hábitos do dia.
As férias são assim, um cortar com o habitual.
Também é bom. Areja a mente. Logo de manhã é a estrada outra vez.
Camiões e carros. Aviões e todos os outros meios de transporte.
O avião é, apesar de tudo, o mais rápido em longas distâncias.
"Desliguem os telemóveis e todos os meios informáticos". Dá para dormitar.
Conversas sobre tudo um pouco. Terroristas, desvios de rota, avarias - tudo do pior.
A senhora de idade já está com suores frios. Não gosta nada disto.
Mas o filho disse-lhe para ir de avião e assim estava mais tempo com os netos...
Novo aeroporto, saíram mangas, escadas, elevadores, malas e ar livre - mas do filho, nada!
Uma mulher nova acena-lhe freneticamente e mostra-lhe um bebé de colo.
Olha, pois é ele... tal e qual a fotografia que o filho lhe tinha enviado.
Mas quem é aquela ruiva... ahh! afinal é a nora, um pouco diferente de cabelo, mas sim, é ela.
O bebé sorri ao colo da avó ainda mal refeita de tanta emoção. Entretanto chegam a uma casa linda, numa serra. É de madeira, igual a outras mais, espalhadas pela serra.
Tudo muito bonito e ordenado na paisagem.
À tarde chegam a neta e o outro neto.
E, finalmente, o filho. Bom... é verdade, sem dúvida...
De manhã (madrugada) ainda na sua casa; e à tarde, tão longe, mas com o seu único filho tão perto.
Os netos são tão lindos e nem os conhecia ainda...
O bebé é amoroso, igual aos outros. - chora e grita - mas este é o seu neto.
O seu choro é mais doce que o dos outros - isto é assim, laços de família...
Hoje vai dormir e lembrar-se de quando o seu bebé chorava e o pai o ia tapar ou trazer para a mãe o mimar.
Carinhos de mãe, só mãe ou quem as vezes fizer.
No entanto, Amor é possibilidade sem título nem medida.

2006-10-29

Sabedoria Ameríndia # Preceitos de Vida

29 de outubro de 2006

A terra é tua antepassada. É sagrada. Deves respeitá-la, agradecer-lhe o alimento e a alegria de viver. Se não vires nenhuma razão para lhe agradecer, é em ti que está a falta.
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A paz nunca chega de surpresa. Não cai do céu como a chuva. Vem ter com quem a prepara.
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O teu próprio espírito não está preso, acorrentado dentro de ti mesmo. Sem que tu saibas, comunica com a natureza subtil dos seres e das coisas. Desloca-se a grandes distâncias, fala nos teus sonhos, envia-te sinais que não sabes traduzir. Aprende a ler no teu espírito, e o Grande espírito do universo responder-te-á.
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Não renuncies nunca a amar, apesar dos desgostos e da aridez do coração. O amor é a grande força que sustenta o universo; sem ele, o mundo viveria um inverno perpétuo.
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Quando se desce muito fundo no interior de si próprio, desemboca-se inevitavelmente na imensidão do mundo. Pode-se facilmente tomar o lugar de uma árvore, de uma montanha, de uma folhagem que respira, tornar-se o voo do pássaro ou o perfume de uma flor. Tens em ti o poder de experimentar as possibilidades espantosas da natureza, pela experiência interior que nos leva ao centro de todas as coisas.
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Quando recorres à meditação, lembra-te que ignoras tudo de ti mesmo. Prepara-te como que para um grande encontro. Vais mover-te num território sagrado, encontrar espíritos dominadores, animais de poder, a alma dos teus antepassados e a de todos os que te precederam no caminho da vida. O espírito do homem é um abismo de pura luz, que se estende pelo infinito do corpo e que atravessa todas as idades.

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Durante o teu sono, estás noutro mundo, dentro do teu corpo, num território imenso de horizonte ilimitado. Aprende a sentir esta vertigem, esta visão de infinito no teu próprio corpo. Transforma-te no universo inteiro.

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O sonho não está encerrado no cérebro de quem dorme. O sonho escapa-se, como o vento sobre a pradaria, e desloca-se por vastas extensões. Quem sonha, não dorme. Viaja.
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Oração ao Grande Espírito: " Ó Grande Espírito, de que oiço a voz nos ventos e cujo sopro dá vida a todas as coisas, escuta-me... Faz-me sábio, de modo que eu possa compreender o que ensinaste ao meu povo e as lições que guardaste em cada folha e em cada rochedo. Peço-te força e saber, não para ser superior aos meus irmãos, mas para ser capaz de combater o meu mair inimigo, eu próprio."

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Preceitos de Vida dos Índios da América do Norte
in "Sabedoria Ameríndia"
com organização de Jean-Paul Bourre
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2006-10-28

Arlequins

28 de outubro de 2006

Traquinices e fofocas, aí estão eles, os arlequins.

Satisfação, alegria, risos fáceis - são o símbolo da sua figura.
Estamos a referir-nos especialmente a situações positivas e não aos aspectos negativos dos abusos, da intriga fácil, para produto jocoso sobre os incautos ou os simples de boa-fé.
Falamos da capacidade de desanuviar tristezas, angústias, com palavras e gestos simples, bem humorados e graciosos.

Desses que embelezam e agradam até o ar em que circulam.
Falamos dessas pessoas que têm charme natural de agradar, não pela bajulação ou ilusão mas pela realidade da sua boa disposição para a vida, com todos os seus pormenores.
Referimo-nos à capacidade de atenuar a rigidez do desagradável.

Da capacidade de incutir um sorriso em semblantes imóveis, de monotonia sem esperança.
Hoje em dia em que a lágrima corre fácil, em que a angústia e o desespero se juntaram, faz falta uma luz de esperança em dias de progresso.
A esperança é o princípio da mudança. É um poder da inércia.

É, como se diz hoje, um verdadeiro e poderoso "motor de busca".
Pois todos os dias, e todos os instantes dos dias, são momentos de promover a nossa felicidade.
E, se conseguirmos ser assim tão melhores, promover também a felicidade dos outros - os que nos rodeiam e os que existem desconhecidos, mais além.

2006-10-27

Trabalho bem feito

27 de outubro de 2006

Conferências ou palestras públicas, sem custos a não ser o da deslocação e do tempo livre para assistir.
Mesmo assim as pessoas são poucas. Os temas são de formação técnica em várias especialidades.

E, mesmo assim, o profissionalismos não é top-ten de interesses.
Isto reflecte ainda o desinteresse e o cansaço das pessoas que chegam ao fim de um dia de trabalho e precisam mais de preparar a rotina do dia seguinte que de outra coisa qualquer.
No entanto a diligência e a actividade, se forem treinadas e disciplinadas, fornecem ao indivíduo maior capacidade de desempenho das suas tarefas - em tempo e qualidade.

O ritmo do ir fazendo, como o verbo indica, é mínimo, de passo a passo.
O ritmo de agenda preenchida com termos certos para as tarefas a executar, sem exageros, mas coordenados com os factores de risco, indiciam o indivíduo a uma vida mais activa e atraente do que a passividade que se prolonga geralmente em preguiça.
Os factores de risco, para uma agenda preenchida, são os atrasos das outras partes envolvidas, os problemas de transporte e distâncias a percorrer, os problemas logísticos que não permitem obter o produto do trabalho elaborado.
Por incrível que pareça são mais impacientes os menos ocupados. Isso porque os mais activos, facilmente substituem as actividades por outras, já na posição de seguintes.
De qualquer modo, por aqui a resposta é invariável - que nada substitui a simpatia das pessoas e o sol deste país. Além da paz.
Prefiro continuar na minha esperança de que novas gerações queiram saber mais, por gosto pessoal de fazer um trabalho bem feito.
Encontrar o orgulho útil do brio na qualidade conquistada com trabalho dedicado.
Mentes ocupadas parecem mais saudáveis que mentes ociosas.

2006-10-26

Trabalho especial

26 de outubro de 2006

Às vezes parece que todos os que se dedicam aos outros, em qualquer das suas formas e manifestações, são mais ditosos no seu trabalho.

Isto porque conseguem reunir o trabalho com o que lhes dá mais gosto fazer.
A sua produção deveria, por isso, ser melhor - em qualidade e até em quantidade.

Mas nem sempre isso acontece.
E ela está ali, olhar vago a ver as peças para trabalhar e a máquina industrial a soprar por cima dela, cada vez que passa o braço mecânico à sua frente.
Nem sabe como faz, está também meio-mecânica, ela mesma.
Hora de almoço, depois intervalo e hora de saída deste turno. A seguir vai para casa pintar.

Gosta de sentir a tela nas mãos e, depois, as mãos e os pincéis e tintas pintam, garatujam, borram até... para esbater os tons.
Todos os dias são bons esperando esses minutos/horas do seu trabalho especial.
Assim que tiver vários prontos, quer colocá-los para venda. Baratos, para os vender ainda antes do Natal.
Não se importa de os embaratecer porque lhe deram muita satisfação e deseja que dêm também muita alegria a quem olhar para eles ou os comprar.
É a sua maneira de dar um pouco de si, dos seus sentimentos aos outros.

Aos outros que quase não vê, pois não convive socialmente, só os colegas da fábrica com quem não consegue falar muito. Nem sabem que pinta.
Parecem duas pessoas numa só. Quando formam família, se calhar consegue ser três nela mesma.
O que importa é sentir-se bem consigo mesma. E se, com isso, contribuiu para o bem de outros, melhor.
Se calhar a felicidade é isso mesmo: uma nuvem que paira por cima de nós.

À espera que olhemos para ela e lhe estendamos as mãos.

2006-10-25

Bem está, quem bem se situa

25 de outubro de 2006

Uma sala de reuniões cheia de gente.
Gente interessada que quer ouvir e, no fim, intervir com as perguntas que lhe aprouverem.
As conferências são sobre os avanços da ciência médica e sobre a influência que a mente tem na saúde das pessoas.
Aliás, assiste-se em vários países a este tipo de pesquisa e desenvolvimento do poder da mente humana no estado de saúde do indivíduo.
Quando era miúda ouvia muita vez que "bem está, quem bem se situa".
Pensava eu que se referia a questões de educação pois, no meu caso, não tinha direito a situar-me com os adultos (antigamente era assim nas reuniões: crianças para um lado, mulheres para outro e homens ainda noutro grupo).
Hoje, pensando nessa frase e por quem era dita, começo a perceber melhor o seu significado.
Talvez quisesse significar mais a situação mental, mais a disposição psicológica do ser do que a situação física da pessoa no grupo em que deveria estar.
Hoje entendo a importância da personalidade e da construção dos pormenores pessoalíssimos que integram cada um de nós, conforme a vida que vamos vivendo.
No entanto há algo que mantenho desde criança: a preocupação de precisar de olhar para trás, ter a impressão que fiz sempre o melhor que sabia e podia naquela situação e naquele tempo.
Também hoje faria algumas coisas diferentes mas, se assim não fosse, não teria havido qualquer evolução; outras teria evitado, porque não foram úteis a ninguém - aparentemente.
Todas as lembranças que me ocorrem sobre a força da mente e da personalidade, na saúde e na doença, parecem ter sido efectivamente factores de importância sobre o corpo.
A vontade de lutar pela vida e a esperança de um futuro melhor, ou diferente, tiveram sempre o seu valor ao lado dos remédios e da cama do doente.
Seria desejável que os cientistas se tornassem mais atentos, sensatos e sábios - por eles e por nós todos.

2006-10-24

Renascer

24 de outubro de 2006

Uma enorme fogueira, ou fogo mesmo.

No meio do campo, da neve, da praia, na planície, no alto da montanha.
Estava em todo o lado e via-se de todas as direcções. Era descomunal. Sem medida...
Felizmente começou a chover. Chuva, lágrimas pelos mártires, luzes brilhantes pelos sacrificados.
Ficaram as chagas para o tempo sarar. O solo arrefeceu e renasceu em flores de todas as cores, formas, arco-íris no céu e no chão.

O espanto era notório e a paralisação continuava total. Nunca tinham visto nada assim.
Passam os tempos e a memória é curta. Adormeceram o sono da Cinderela.

Ao acordar foi como instalar uma barreira no passado.
Os dias sucedem-se como novos. As pessoas continuam a viver e, lentamente, adaptam-se com nova vivacidade ao dia-a-dia.

Flores, plantas, árvores, animais e aves, retomam o seu lugar.
Os pesadelos acabaram. Novas lutas esperam outros dias.

Todos esperam ter sempre coragem. Coragem de lutar e também de ter paciência.
Coragem de ter esperança e fé numa felicidade eterna que um dia há-de vir.
E a vida tem sempre muito disto - de esperança em viver melhor, de renascer sempre mesmo que seja das cinzas.

2006-10-23

Viuvez

23 de outubro de 2006

Exames, escolas, trabalhos.

Ou cultura, instrução, preparação para o futuro de cada um no trabalho e na família.
Tudo muito bonito, tudo muito esforçado, tudo bem encaixado nas horas de cada dia.

Nas horas da imprescindível agenda - de papel ou electrónica.
Hora de ponta e lá vai meio-mundo para o trabalho.

Frenesim nos transportes, nos cafés e pastelarias, finalmente às portas dos empregos.
Os bons dias habituais. Começa a rotina diária.
Diz uma empregada que gosta de vir trabalhar. Distrai-se e ainda lhe pagam.
O trabalho não é nada especial, as colegas nem por isso. Mas sai de casa.
Mora sozinha, enviuvou há pouco e a casa está demasiado silenciosa.

O melhor era mudar as coisas de sítio, da sala ao quarto. Os adornos, o sofá, tudo!
De modo a entrar como se fosse noutra casa. Não é susto, nem medos, nem sequer saudade.
É o vazio da casa. Não há mais ninguém. Um silêncio que só visto.
Adormece nas cadeiras ou no sofá. Ou vai para o café.

Ainda não limpou nem pó, nem chão - nada. Não consegue mexer em nada.
A tristeza afoga, sabem? É silenciosa. Agora vêm aí dias de folga acumulados e que têm que ser gozados.

Não pode ir trabalhar. Nem sei como vai ser.
Pinte a casa, encere e envernize o chão. Tire as roupas do armário e ofereça as dele, ainda boas.
As outras, deite fora.
Uma semana depois vem ela, penteada, arranjada, parece gente viva!

Um cabeleireiro bom faz milagres numa mulher.
Mais alegre, mais ela - querida, amorosa como sempre a conheci.
A novidade agora é o ar mais descansado de quem já dormiu bem. E o sorriso.

Um sorriso que a ilumina como o sol no céu.
Decidiu não chorar os dias sem ele.
Vai viver serenamente até poder ir ter com ele.
Arranjada como ele gostava.

2006-10-22

C. S. Lewis # O Cavalo e o Seu Rapaz

22 de outubro de 2006
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Oh, por favor... por favor, vai-te embora. Que mal te fiz? Oh, sou a pessoa mais infeliz do mundo!
Mais uma vez sentiu o bafo quente da Coisa na mão e no rosto e ouviu-a dizer:
- Vês? Isto não é o hálito de um fantasma. Diz-me o que te aflige.
Aquele hálito tranquilizou um pouco Xassta. Por isso lhe contou como nunca conhecera o pai e a mãe e como tinha sido duramente criado por um pescador. Depois contou a história da fuga, como tinham sido perseguidos por leões e obrigados a nadar para salvar a vida; e falou de todos os perigos de Tashbaan, da noite passada entre os Túmulos e de como os animais vindos do deserto o haviam ameaçado com os seu uivos. Falou ainda do calor e da sede da viagem pelo deserto e de como estavam quase a chegar ao destino quando outro leão os perseguira e ferira Arávis. E também de como não comia nada há muito tempo.
- Não acho que sejas infeliz – disse a Voz Profunda.
- Não achas que foi pouca sorte encontrar tantos leões?
- Só havia um leão – respondeu a Voz.
- Que queres dizer? Acabei de te contar que havia pelo menos dois na primeira noite e...
- Só havia um, mas era rápido de pés.
- Como sabes?
- O leão era eu. – Xassta ficou de boca aberta, sem saber o que dizer, e a Voz prosseguiu: - Eu era o leão que te forçou a reunires-te a Arávis. Eu era o gato que te reconfortou entre as casas dos mortos. Eu era o leão que afugentou os chacais enquanto dormias. Eu era o leão que deu novas forças aos cavalos nos últimos quilómetros para que tu chegasses a tempo junto do Rei Lune. E eu era o leão de que não te recordas e que empurrou o barco onde te encontravas, uma criança às portas da morte, de modo que chegaste a terra, onde estava um homem sentado, acordado à meia-noite, para te receber.
- Então foste tu que feriste Arávis?
-Fui.
-Mas para quê?
- Criança – respondeu a Voz -, estou a contar-te a tua história, não a dela. Só conto a cada pessoa a sua própria história.
- Quem és tu? – perguntou Xassta.
- Eu mesmo – respondeu a Voz, tão profunda e tão surda que a terra tremeu. – Eu mesmo – repetiu de uma forma nítida, sonora e alegre. – Eu mesmo – repetiu pela terceira vez, num murmúrio tão doce que era quase inaudível, embora parecesse provir de tudo o que havia em redor, como trazido pelo sussurrar das folhas.
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Aproxima-te, Arávis, minha filha. Vê! As minhas patas parecem de veludo. Desta vez não serás arranhada.
- Desta vez? – perguntou Arávis.
- Fui eu que te feri. Sou o único leão que encontraste em todas as tuas viagens. Sabes por que te arranhei?
- Não.
- Os arranhões nas tuas costas, golpe por golpe, dor por dor, sangue por sangue, foram iguais aos vergões que ficaram nas costas da escrava da tua madrasta devido à droga que lhe deste para adormecer. Precisavas de saber o que se sente.
- Sim, estou a ver. Por favor...
- Pergunta, minha querida.
- Ela vai sofrer mais devido ao que eu lhe fiz?
- Criança – respondeu o Leão – estou a contar-te a tua história, e não a dela. ... ...

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in " As Crónicas de Nárnia", vol. 3 - "O Cavalo e o Seu Rapaz"
de Clive Staples Lewis
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2006-10-21

Opções

21 de outubro de 2006

Um edifício enorme, com parque de estacionamento e anexos. Um quarteirão inteiro.

São tudo escritórios e armazéns de materiais e manutenção.
As chefias não são propriamente responsáveis, mas sim escolhidas por qualidades que não de trabalho.

E há centenas de outros que trabalham mesmo e outros que se escusam em recados e consultas e sei lá que mais que os afasta do local de trabalho.
São questões de produção que resta responder conscientemente, mas até lá é um lugar de convívio e de trabalho.

Até lá a concorrência pelo ordenado, viagens e todas as benesses que se possam acumular extra-imposto são o móbil do dia-a-dia de cada um.
Actualmente assiste-se à valorização de uma carreira profissional sem limites.

A família, os amigos, tudo o que respeita à vida do indivíduo, mais a casa, o carro, o estilo, a figura, o comportamento, a educação, a moral e até os pequenos hábitos diários, sucumbem ao poder de primazia da carreira profissional.
E depois da carreira, que pode não chegar ao topo, não sobra nada, nem uma brisa do que se poderia desfrutar da vida.

Opções que todos temos direito de fazer por nós próprios.
O seu valor e o peso que têm nas nossas vidas é que, por vezes, nos ultrapassa e pode ter a capacidade de hipotecar a nossa felicidade.
A felicidade da nossa paz interior.

A felicidade da nossa casa e da nossa família, dos nossos melhores amores.
A tranquilidade do nosso sono.
Porque todos deveríamos merecer-nos sonhos felizes. Acordados ou a dormir.

2006-10-20

No tempo da água

20 de outubro de 2006

Dia cinza. Águas chegando à praia. Sem ondas. Mas calmo e cinza. Águas volumosas.

Ele olha para dentro daquela água toda e lembra um dia lindo de céu azul, sol brilhante.
Do alto do penhasco, cheio de flores, atirara-se em elegante mergulho para as águas então azuis e reluzentes.
Não se lembra do que aconteceu a seguir e agora está ali.

Nesta praia não é necessário mergulhar para chegar à água. Basta caminhar para dentro dela.
Fundir-se com ela. É bom nadar por dentro dela.
Não, não é mergulhando. É simplesmente nadando por dentro, sem vir à tona de água nem para respirar.
É conseguir a simbiose. A união entre o elemento água e o seu corpo.
Já percorreu uma longa distância desde a praia.

A água agora é escura, azul muito escuro por baixo dele. Mas muito azul junto à superfície.
Os peixes passam por ele como se ele é que estivesse num aquário.
Não lhe ligam nenhuma. Mas desviam-se quanto baste.
Lembra-lhe a descrição dos buracos negros, ou seja, existem e não se percebem, a não ser numa única direcção.
E se os buracos negros fossem isso mesmo, fendas ou desníveis intemporais ou inter-dimensionais ou inter-universos?

Ou tudo isso ao mesmo tempo, seja ele o que seja. Doutro tempo, doutra dimensão, doutra virtualidade.
E, no entanto, existe - vive. Quando será o tempo do não-tempo?

Quando será possível a ciência provar a pluralidade da existência do ser?
Assim do mesmo modo que explica a sucessão dos dias e das estações num único lugar.

E em todos os lugares conhecidos, de modo diferente para o tempo de aparecimento do mesmo fenómeno.
Talvez os cientistas consigam perceber que o seu laboratório não é tão estável quanto lhes parece.

Talvez possam ser mais doutores que professores.
Olá... começaram agora ondas boas para fazer surf na mesma praia de "agorinha".

2006-10-19

Repartições

19 de outubro de 2006

Uma casa na colina ou a casa da colina.
Parece não passar de um sonho de tão complicadas que são as leis administrativas.
As leis são necessárias para ordenar pessoas, direitos e deveres e todas as coisas para que servem efectivamente.
Serão então as pessoas que delas se servem que as complicam na sua aplicação?
Alguma razão haverá para dar esta impressão.
Será questão de dinheiros que sobram ou que faltam ou será falta de vontade para resolver?
Às vezes há sonhos tão simples que se tornam complicados, talvez porque não estão no tempo certo de serem resolvidos ou porque falha a imaginação...
Seja de que modo seja, as leis não estão lá muito pelas necessidades das pessoas.
As repartições, nem pensar. Ainda pior.
Vamos uma e outra vez para resolver o mesmo.
Não que os empregados sejam antipáticos mas geralmente não resolvem e, outras vezes, ainda complicam bastante.
Profissão sem dúvida ingrata.
Não queria falar na quantidade de impressos e papéis, mas não consigo.
É perfeitamente indescritível o número de assinaturas e carimbos que se devem apresentar em duplicado. E ainda mais que isso.
As pessoas já vão desconfiadas para as repartições.
Ao contrário das farmácias onde se espera e paga a bom preço por remédios que se espera sejam para melhorar os sintomas.
Nas repartições espera-se, paga-se e não se sabe bem para quê.
No meio de tanta conversa inútil, ouvi dizer que as leis dos homens são cópia das leis de Deus.
Cruz, credo! Deus nos acuda... e melhores dias virão!

2006-10-18

O Outono

18 de outubro de 2006

Olhos pestanudos observam debaixo de água. Água límpida. Olhos lindos.
Cada planta tem uma flor que é afinal um olho bonito, enorme e de pestanas grandes e penteadas. São muitas estas plantas aquáticas. Dobravam-se para chegarem a fazer-lhe carícias e, por fim, acordaram-na.
A rapariga submersa na água distante que a maré levou e trouxe há bastante tempo, acordou agora à beira da praia.
Uma praia que não conhecia. Parecia transparente e ora ondulava a paisagem em forma de praia, ora ondulava em forma de colina cheia de flores que iam e vinham como ondas do mar.
A espuma era branca até se transformar no ondular de flores brancas. Umas chegavam à praia, as outras ondulavam ao vento na colina.
Ela não estava a perceber lá muito bem. Onde estava afinal se nem conseguia distinguir se praia, se campo, se ondas, se flores?
Os olhos elevaram-se nas suas hastes e olharam melhor para ela.

Pareciam sorrir-lhe. Mas eram olhos... Que seria aquilo tudo?
Uma avó veio ter com ela - avó porque era muito velhota, de cabelo de neve. Muito bonita e simpática. Disse-lhe para ser paciente e não ter pressa. Tinha que esperar que a paisagem estabilizasse.

Estava tudo em mudança. Ela percebia isso, pelo menos!
Então sentaram-se as duas e esperaram que a paisagem mudasse de vez.

E ela mudou, os céus mudaram, parecia que uma estação tinha mudado.
As cores tornaram-se amareladas e acastanhadas.
Os céus, pálidos mas luminosos. Uma brisa leve, fresca e húmida até arrefeceu o calor do dia.
Os verdes desbotaram um pouquinho. Os brancos agora são mais beiges.
O Outono chegou!

2006-10-17

Ganhar a vida

17 de outubro de 2006

Lago rectangular a lembrar uma piscina. Colunas à volta e degraus de suaves declives.
Tudo em branco e azuis. Uma verdadeira multidão aproxima-se.

Crianças, mães com filhos ao colo, grávidas, velhos, homens e mulheres sozinhas.
Todos caminhando na direcção desse lago.
Têm no semblante um sorrir sereno, um ar leve ao caminhar e parecem algo esperançados em chegar e, talvez, em falar com alguém.
Sim, é verdade. Querem falar! Melhor, dar um recado...

Que estão bem agora, trabalham e ganham o dia. Ganham a sua própria vida.
Querem agradecer pelo re-direccionamento das suas vidas. Pela revalorização das suas qualidades.

Pela procura moral que tiveram que fazer e como isso os aproximou de outros semelhantes.
De como se sentem felizes.
Felizes pelos outros e por eles mesmos.
As crianças entretiveram-se a brincar e, ao chamado de despedida, juntaram-se com a sua alegria simples e contagiante.
Todos levaram uma luzinha nas mãos, com todo o cuidado.
Escurecia no sítio e, ao longe, eles continuavam a iluminar o horizonte.
Não se trabalha para agradecimentos mas é muito satisfatório ouvir dizer, de viva voz, que outros estão felizes e que, se calhar, contribuímos um pouco para isso.
Sente-se uma certa paz interior. Um transitar mais leve e apaziguado para casa.
De volta com a família sentimos melhor a felicidade de estarmos juntos, em tempos de paz.
Por vezes o que existe todos os dias não tem o valor que lhe deveríamos atribuir.
Trocámos beijos de pais e filhos e abraços. Todos vivos e em casa para jantar.
Com pouco ou muito, também estávamos juntos.

2006-10-16

Noventa anos

16 de outubro de 2006

Sr. padre, acorde! Acoooorde... ora boa tarde... é para almoçar.

O quê? Não, não é para cantar, é para almoçar. Pois são horas de almoço, sim senhor.
Não, ainda não se pôs o sol...
Bem, aqui está a sopa... com água... pois, está um bocadinho aguada, está...

Devagar porquê, se está melhor? Ah! tem tosse.
Tem frio também? Com o calor que está?
Tem cobertor e colcha, sim senhor. Tudo como pediu.
Acabada a sopa devagar, agora é a vez duma maçã assada.

Não, nada disso... não é para cantar ainda os salmos.
Daqui a alguns dias... talvez!
Não tem cura... isso só Deus sabe.

Hoje já está melhor. Amanhã é outro dia.
Nem pense em cantar os salmos com essa tosse. Não, não... nem com edredão por cima.

Não dá, engasgava-se logo.
Se o médico disse que estava melhor? Disse! E vê-se logo que está melhor.

Já fala e sabe que quer um edredão. É porque está melhor.
Não, para cantar os salmos não dá. Ainda não.

Gosto muito da sua capela. É linda. E gosto dela assim, vazia.
Dá para pensar sossegada.
Bem haja! pelos cuidados que teve ao longo dos anos.

Já tem noventa.
Está muito bom para noventa anos. Vai melhorar, sim.
E vai cantar. Oh!, se vai...

2006-10-15

António Variações # Anjinho da Guarda

15 de outubro de 2006

Anjinho da Guarda
.
Eu tenho um anjo
Anjo da guarda
Que me protege
De noite e de dia
Eu não o vejo
Eu não o oiço
Mas sinto sempre
A sua companhia
.
Eu tenho um guarda
Que é um anjo
Que me protege
De noite e de dia
A toda a hora
E em todo lado
Posso contar
Com a sua vigia
Não usa arma
Não usa a força
Usa uma luz
Com que ilumina
A minha vida
.
Ele não
Não usa arma
Ele não
Não usa a força
Usa uma luz
Com que ilumina
A minha vida
.
in álbum "anjo da guarda" de António Variações
nome artístico de António Rodrigues Ribeiro
.
.

2006-10-14

Onde menos se espera...

14 de outubro de 2006

Passeamos pela ruas comerciais da cidade. Vontades femininas de comprar.

E tantas coisa novas, porém não "necessariamente necessárias". Mas lindas, lindas...
No meio de tudo, hora de refeições. Os que mendigam aparecem junto dos restaurantes, que vão abrindo as portas.
Lendo atentamente uma lista, com almoço turístico, aparece um homem velho, de aspecto modesto mas muito limpo, a pedir dinheiro para uma sopa.

Olhando para a ementa, confirmamos o preço e damos-lhe as moedas para tal.
Ele entra e pede a sopa no balcão, no lugar mais perto da porta.
Com ele está também a imagem dum lago, grande, de águas serenas, ladeado de montanhas altas e nevadas.

O azul dessas águas é azul claro e tem como que um manto prateado por cima.
Terras claras, cor de areia, estão nas suas margens, cobertas de arbustos rasteiros.
O homem está agora a comer a sopa e o empregado oferece-lhe uma carcaça para acompanhar.

A fome sente-se, mas por vezes torna-se visível aos outros. Era este o caso.
Com a mesma simplicidade levanta-se para sair. E o "seu" lago evapora-se.
Agora só aparece o homem velho, de aspecto limpo.
Ele ganhou uma sopa. Nós ganhámos o dia e a convicção que onde menos se espera há boas surpresas.

Que onde menos se espera há pureza e beleza.
Que em qualquer dia e a qualquer hora é boa hora, é hora abençoada de felicidade.

2006-10-13

Leitura

13 de outubro de 2006

Uma leitura pública, um trabalho.
Um homem que deveria fazê-la e falta. Um homem que deveria ouvi-la e vai lê-la.

Nervosismo de quem preparou tudo à última hora. Sala que se vai enchendo de gente calma, cansada ou desesperada ou angustiada.
Todos esperam que comece. E, à hora marcada, começaram as leituras.
São de interesse variado mas a linha comum é de orientação psicológica para a felicidade na vida de cada um.

A disciplina de refrear as emoções negativas e transformá-las em tolerância e paciência.
A ética moral ou desenvolver as boas qualidades, como a compaixão, a caridade, a alegria, harmonia e paz, integridade, verdade e esperança.
Esperança que tudo isto resulte para criar felicidade em cada um.

Para criar um círculo de boa influência à volta do indivíduo Que assim age e interage com a família, a vizinhança, colegas de trabalho, amigos e desconhecidos.
A seguir é a hora das perguntas da audiência. Os que querem solucionar em vez de compreender.
Os que desesperam por si mesmos e seus sofrimentos.
Mas também aparecem os outros. Os que se preocupam mais com os sofrimentos de pessoas que lhe são queridas. Ou por quem têm pena.

Porém são ainda uma pequena percentagem.
E assim vai o mundo para outro dia que vem a seguir. "A seguir ao tempo, vêm tempos. E depois dos tempos o tempo vem."
Por tempos mais sãos e melhores, vamos esperando e desejando sempre.

2006-10-12

O pedido

12 de outubro de 2006

Dia chuvoso, de céu azul e cinza, que chama a tristeza.
Alguns dizem que são os melhores dias para viagem porque, para conduzir (antes do ar condicionado), o conforto da temperatura amena e sem humidade, que se encontrava nos carros ou camiões, era menos cansativa que o calor ou frio excessivo.
De qualquer modo não são dias alegres de céu azul.

E nessa cor cinza decorrem as actividades de um velho que tenta libertar-se de um sono que o inviabiliza e da cadeira onde está sentado e onde se sente preso.
Oscila ele e a cadeira juntos, até que percebe uma voz que o chama e pergunta onde ele está.
Apesar de tudo consegue fazer-se ouvir e localizar.

Está numa sala estreita com uma cama do lado direito de quem entra pela porta de ferro. Tem também uma mesa rectangular, alta e estreita, com uma única cadeira - onde ele está sentado - no topo da mesa e frente à dita porta.
Finalmente livre da cadeira, dá por ele num pátio aos ombros de alguém que o segura com força.

Agora já no chão do que lhe parece uma rampa de terra batida, quer perguntar o que é aquilo tudo, mas não consegue.
Espantado, vê que o alguém forte é afinal uma mulherzinha e ele é que está demasiado fraco.
Fraco mas não vencido e no meio da confusão que sente, faz o que nunca se lembrou de fazer - reza. Ou pede. Pede ajuda ao céu, ajuda a Deus ou a algo superior a ele para lhe dar forças.

Forças para lutar e encontrar a sua liberdade.
Se é para morrer que morra livre. Livre de amarras materiais ou morais.

Quer poder escolher uma vida melhor nem que seja para a experimentar apenas alguns momentos.
Sentir a leveza do ar livre, respirar dignidade.
Sentir-se um homem novo, não jovem, mas novo. Com novos preceitos de vida.

Pediu para sentir outar vez o brilho e o calor do sol, não apenas no céu, mas dentro de si mesmo.
E o dia raiou com um sol só para ele, por cima das nuvens escuras.

2006-10-11

Moda

11 de outubro de 2006

Procurando sapatos. Sapatos de mulher.

Mundo diferente de procurar sapatos de homem ou rapaz.
Lojas e lojas. Modelos e modelos. Saltos e meios saltos.

Saltos altos, muito altos, baixos, cunhas, rasos, sei lá...
E cores? Bem, parecem saídos de paletas de tintas para pinturas.

Dos ornamentos então... nem falar.
Com metais, couros, camurça - fivelas e fivelinhas; tiras e cores contrastantes. Fitas que se enrolam perna acima. Solas luminosas. Há de tudo em todos os números.
Mas escolher... muito difícil. Se prefere um modelo, não tem a cor.

Se tem o modelo e a cor, não tem o número. Ou então, o salto não interessa.
Portanto a escolha torna-se difícil pela variedade e mais ainda pela conjugação das particularidades.
E depois vem o preço que, geralmente, estraga todas as condições anteriores.
Agora comparemos com sapatos masculinos.

As cores resumem-se a duas ou três e pouquíssima graduação de tonalidades.
Ou são de atacadores, ou de fivela, ou pala. Sola de borracha ou de couro.
Pronto! Se tem o número e o preço acertado, na segunda loja - máximo - estão comprados.
O mesmo contraste para menina e menino. Rapariga ou rapaz..
Hoje, no seguimento de isto tudo, fomos a uma loja que passou por obras de remodelação.

Modernice aqui e ali. Nada de especial.
Ohh! Tem de especial sim. A secção de homem desapareceu.

Agora só tem criança e jovens unisexo, e senhoras logo no rés-do-chão.
Há menos homens ou eles compram efectivamente menos...
Se calhar as modas femininas deveriam ser menos variadas e de melhor qualidade.
Se calhar... ah, já não sei o que digo e deve ser o cansaço a falar...

2006-10-10

A mente

10 de outubro de 2006

Homem de bigode grande e farfalhudo, a rir-se. Outro homem apático, semiconsciente numa cadeira junto a uma mesa. Outro homem, de pé, guarda-o para que não mexa nem acorde.
O de bigode, bem vestido e parecendo uma visita como que a um preso, está alegre, vivaço e ri-se muito. Mostra o tal apático a outras pessoas como a exemplificá-lo de qualquer coisa que não se percebe.
Dá vontade de fugir. E, além disso, a visita terminou mesmo por decisão do tal guarda.
Passam-se portões e a sós na paisagem imensa e vazia, os pensamentos vinham em catadupa e fugiam, sem os conseguir deter.

Não percebia nada. Nada parecia ter ligação.
A pobre coitada, meio louca numa cadeira de hospital psiquiátrico, jazia também no vazio.
Só se mexia com movimentos precisos a compor a roupa, as ligaduras e as mãos quando se sujavam.
Os olhos vazios - vazios e longínquos como nunca vi.

Falava com ela, mas estava longe, sozinha, e quem se sentia sozinha era eu.
Não conseguia fazer que deixasse de mexer as mãos e as levasse à cara, aos braços, às ligaduras.

Nem sequer me via. Nem via os remédios. Mas uma vez postos na boca, engolia-os perfeita e mecanicamente.
Quantos, oh quantos! como estes dois haverá por aí - sozinhos ou acompanhados.

Presos à força ou em tratamento médico.
Eles estarão sozinhos também deles mesmos?
A mente, esse enigma de capacidades que escapa aos cientistas. Todos os estudos e operações, e autópsias, e descargas eléctricas... coitados dos doentes, das vítimas.
Coitados dos cientistas que também não sabem observar o objecto de estudo.

O seu objecto está com eles mesmos. É o seu próprio cérebro no activo, que deve ser actualizado e experimentado pelo próprio médico.
Talvez assim, alvo das suas próprias experiências, logre sentir-se mais humano, mais mental.

E, na sua auto-análise, ajudar a tratar os doentes mentais a que se dedicar.

2006-10-09

Modéstia

9 de outubro de 2006

Um casamento. Simples, em cartório. Cerimónia simples, sem luxos.
Mas tinha o mais importante, a renovação do amor e dos votos de protecção de um pelo outro, em permanência. Até que a morte os separe.
Trocam-se promessas e juras.

Mesmo que a morte os separe há-de ficar o amor no ar.
O espaço encheu-se de luz. A sala via cair as lágrimas dos foguetes.

Luzes multicolores brilhavam sobre os noivos e os convidados.
Muitos amigos, em pensamento, desejaram-lhes felicidades e a dignidade de uma vida a dois.
Uma família se formava. Novos laços que, a seu tempo, iriam cruzar outros laços e famílias.
E por aí afora... somos todos partes de uma grande e única família.

Uma família ancestral que hoje consegue viver sem graves problemas.
Os noivos e a meia dúzia de convidados vão almoçar. O restaurante serve-lhes ementa especial.

Por agrado e não por encomenda. Eles, na sua modéstia, não poderiam ter reservado nada.
Almoço prolongado. Lua de mel em casa, pois a felicidade foi conseguir uma casa para viverem juntos e sem interferências do passado.
Com o tempo vieram filhos, os cães e gatos. As plantas e flores. Enfim, todos os símbolos de um lar fixo.
Depois relembraram as infâncias e as diferenças de gerações.

Depois os filhos casaram e a casa parece cada dia mais silenciosa.
Novas vidas vão surgir. Novas vozes se irão erguer.
Lá fora - e longe - novas economias, profissões e políticas vão surgir.
Segundo os cientistas, um planeta renovado também vai renascer neste.

Com muita água dos degelos e pouca terra.
Vejamos... a Terra também já vai explodindo no meio de guerras tolas.
Parece impensável que, em 2000 anos, os homens ainda não se entendam a falar.
A força e a harmonia estão desde sempre na natureza.
O homem ainda não ultrapassou a força. Uma pena...

2006-10-08

António Gedeão # Arma Secreta

8 de outubro de 2006

Tenho uma arma secreta
ao serviço das nações.
Não tem carga nem espoleta
mas dispara em linha recta
mais longe que os foguetões
.
Não é Júpiter, nem Thor,
nem Snark ou outros que tais.
É coisa muito melhor
que todo o vasto teor
dos Cabos Canaverais.
.
A potência destinada
às rotações da turbina
não vem da nafta queimada,
nem é de água oxigenada
nem de ergóis de furalina.
.
Erecta, na noite erguida,
em alerta permanente,
espera o sinal da partida.
Podia chamar-se VIDA.
Chama-se AMOR, simplesmente.
.
de António Gedeão
in "Máquina de Fogo"
.

.

NOTA: ergóis de furalina - mistura combustível usada na propulsão de foguetões

2006-10-07

O Norte

7 de outubro de 2006

Futebol, guerras, vacinas, finanças e investimentos, publicidade a despropósito e mais notícias do país e do mundo.
No mesmo teor de desgraças de todo o tipo, mais as de origem natural: tufões, fogos, degelos, tempestades...
Estes são os resumos, cuidadosamente preparados, da nossa cultura, 2000 anos depois de Cristo.
Parece que a cada desafio de bem-estar se processa uma contra-resposta guerreira.
Pergunto-me se as pessoas perderam assim o norte das suas vidas, do seu rumo à felicidade.
Não será uma questão de religião, nem sequer de não-religião.
Será antes um menosprezar do respeito e dignidade do outro quanto a si próprio.
Quem não é digno de si não pode ser digno dos outros.
Quando se valorizam as violências, quaisquer que elas sejam, não se valorizam as possibilidades de felicidade e bem estar.
Tudo o que nos rodeia mostra poderes de renascer e de qualidades boas.
Desde os ciclos da natureza às crianças - tudo renasce e se desenvolve em plenitude.
Porque se esforça tanto o Homem por destruir o que tem de bom?
Todos somos potencialmente bons. Porque se esforçam tanto os adultos em renegar as suas responsabilidades? Pior ainda, em complicar e até denegrir, as suas vidas e as dos outros.
Talvez seja altura de envidar esforços para produzir o melhor de nós próprios e mostrarmos do que somos efectivamente capazes de fazer.
Das nossas vidas - para começar.
Deve haver algures uma criança naturalmente boa dentro de todos os adultos.
Só temos que a deixar falar e seguir as suas opções de simplicidade.
Gozar o dia à espera do próximo, sem ilusões nem planos difíceis a não ser a simplicidade de viver, digna de si mesma e harmonizando-se com os outros.
Cumprindo os seus deveres e sendo útil, pelos seus esforços e sorrisos, à comunidade onde se integra.
Isto tudo porque, ainda hoje, "o melhor do mundo são as crianças".

2006-10-06

O grupo

6 de outubro de 2006

Um grupo de crianças maltrapilhas. Roupas em trapos, mesmo.

Caras sujas e pés negros de sujidade.
Mas um brilho de vida nos olhos que chamava até na escuridão.

Não há como as crianças para manter a chama da esperança.
No meio do desespero, frágeis e confusas, são um archote de esperança.
Este grupo chega calado. Estão desorientados e não sabem onde estão.
Houve uma explosão no lugar onde estavam e vieram juntos, agarrados uns aos outros conforme se encontravam. Passaram maus tratos de toda a espécie.
Os adultos, homens e até mulheres empedernidas, conseguem ser mais cruéis que animais esfaimados.
Também trazem o "estômago colado às costas" da fome e os lábios ressequidos da falta de água.

Mas continuam juntos, em grupo, os mais velhos à volta dos mais novos, em jeito de protecção.
Olham avidamente para nós e para a paisagem. Um campo de terra seca, limpo, sem arbustos, nem água, nem nada.
Sento-me à sua frente, na terra, e espero.

Daí a pouco os mais pequenos vêm sentar-se ou deitar-se na terra, ao pé de mim.
Um mais pequenino fica ao meu colo e adormece de seguida.
Os mais velhos abrandam a vigilância e sentam-se também, mas não se deitam nem adormecem.
Ninguém disse nem diz nada. Observamo-nos mutuamente com curiosidade.
Alguém traz um lago com montanhas e toda uma paisagem fresca para o pé de nós.

Tem cascata pequenina e é linda.
Os mais velhos correm para a água, banham-se e lavam-se com um sabão muito perfumado que lhes cai nas mãos.
Os pequeninos, acordados por esses, vão também ao banho. Ficam a brincar por lá.
A alegria começa a bailar nos seus olhos e, à sua volta, o espaço enche-se de sons, risos e cançonetas.

Chega a comida fresca - frutos, queijos, leites, pão, bolos secos.
Um banquete que parece não os saciar nunca.
O espaço enche-se da felicidade deles, por eles.
Pela sua esperança de tudo melhorar. Um dia...

2006-10-05

Tempo

5 de outubro de 2006

Uma casa numa quinta. Estrada de terra, vinhas, árvores de fruto, criação, gado e cães à solta, como habitualmente.
Portão fechado. Nome de santa e vontade de ficar.
Um jardim na vida corrida de todos os dias.

Um espaço meio selvagem que dá gozo na civilização dos centros comerciais a que nos habituámos.
Um homem que fala o que não deve. Que recorda o que não era para recordar assim, de modo sofrido.
Recordar é viver, mas é conveniente recordar pelo bom, pelo bem que se pode fazer em recordar.

Usar a fantasia, não pela simples ilusão dos sentidos, mas na disciplina do que deveria ser corrigido.
Como nos pesadelos em que, ao acordar, podemos corrigi-los e então adormecer descansados.
Assim também nas recordações infelizes, podemos ultrapassar erros e provocar o seu progresso.

Pelo menos era esse o pensar de uma amiga. Acabou por ser em dia de festa. De comes e bebes. De bailarico e fuga dos mais apressados.
Entre sonhos e ilusões, fazia-se o regresso a cada lar. Fechava-se o portão. Caía a noite.
Um novo sol e uma nova disposição para viver o resto da vida.

Trabalhando e intervalando. Na realidade e na fantasia.
O homem foi pensando melhor no que devia dizer aos outros. Na atenção que deveria ter pelos sentimentos e entendimentos dos outros.

Foi percebendo que a sua verdade podia não ser a dos outros. Que cada um tem a sua verdade.
E que o tempo é o tempo justo para cada pessoa.

Que todas as coisas têm o seu tempo próprio para passar por baixo de cada céu, conforme foi pre-escrito.
Que o tempo dá e tira. Faz e desfaz. Que nada é eterno. Que nada se obtém para sempre.
Que em cada tempo devemos tentar ser o melhor possível. Que o tempo depois só nos recorda.
Que o tempo é acerto de medida.

2006-10-04

Sonhar

4 de outubro de 2006

Crianças ao colo das mães. Outras crianças deitadas em camas de hospital.
Também há mães deitadas com os filhos de pé, junto delas, sem perceber porque elas não se mexem.
Eram imagens de uma reportagem de África, mas podem ser de muitos outros lugares.

A Cruz Vermelha faz os possíveis. Se calhar, até os impossíveis.
Dá vontade de sonhar. Sonhar que todos nós, que estamos melhor, poderíamos oferecer o melhor de nós mesmos - amor, carinho, ideias sobre cuidados de higiene ao céu que nos ilumina, às nuvens, às estrelas, ao sol e à lua, às chuvas...
E manter a esperança que todos eles levassem as nossas ofertas aos que realmente necessitam.
E pudessem todos sentir, caindo como chuva, essas benesses. E saciarem a sede. E a fome. E os frios.
E pudessem sarar os medos e os problemas.
Assim como as doenças pudessem curar-se e pessoas pudessem melhorar ainda antes de estarem doentes.

E os médicos poderiam descansar.
Desejar que as aldeias bem dirigidas aparecessem e organizassem a família e lhes ensinassem os cuidados de higiene. E a água e o sabão fossem abundantes.
Todos pudessem descansar e trabalhar em condições de progresso.
E os países com manias de guerra e ataques nucleares, usassem esse dinheiro para o progresso de todos.

E os que sabem, ensinassem os que desconhecem.
E à volta do planeta todos dessem as mãos, como se via num anúncio.
E todos acreditassem que já passaram 2000 anos sobre os ensinamentos de Jesus, mesmo que não pareça nada.
E todos olhassem para si mesmos e analisassem a sua própria evolução desses registos de moral ao próximo, e se auto-colocassem numa escala a partir do ano zero.
E todos pudessem fazer algo pelo seu dia e por um papel mais activo pelo próximo
mais próximo.
E, amanhã, pelo próximo mais longe.

2006-10-03

Intervalo

3 de outubro de 2006

Dia enevoado - intervalo entre turnos. Elas vão dar um passeio para exercitar as pernas. Procuram uma revista de modas - modas, maquilhagem, etc. - coisas de mulheres.
Vão andando de tabacaria em quiosque. Do quiosque em papelaria com revistas.
Nada que interesse. Já venderam as anteriores, que foi uma pressa, porque traziam as modas Outono/Inverno. Pois traziam. E traziam brindes!
Voaram todas, só ficaram as que se vêem, ou seja, as mais caras.

- Veja bem, minha senhora, não vamos dar por uma revista mais que por uma camisola ou outro trapinho, não é?
Todas entendidas que os preços estavam disparatados, e que por isso mesmo é que não tinham sido

compradas, pois então não se estava a ver que assim era?
A caminhada já ia longe e faltava ainda o caminho de volta a horas.

Novo quiosque e pastelaria ao lado. Uma tentação: revista com brinde e mais barata que as outras.
Acabadinha de chegar. Irresistível o café ao lado com mesa para bisbilhotices, as modinhas, cores, anúncios...
Gente snob a falar devagar nos pedidos para a mesa. Gente apressada que quase lhes atrapalha a lentidão. Bom... e o snobismo. Também tanto... até sobra...
Gente vidrada que, apesar de tudo, também come - sobretudo daqueles bolos grandes. Com creme, ainda melhor.
Todos pagam a sua despesa, sem excepção, que ali até o pedinte só entra com dinheiro.
Tudo limpo, bons modos e bom ambiente. Gente afável em sereno convívio.
Gostei de tudo e até da revista. Era melhor do que esperava.
Lembrámos as outras tão caras. Fazendo contas, eram ao dobro do preço. E a qualidade não era o dobro.
O desfrute de um intervalo merecido. Já de volta levamos novas energias.
Levamos também a alegria necessária para melhorar os que ficaram à nossa espera.

2006-10-02

Chuva

2 de outubro de 2006

"Chove chuva" - pois que mais poderia ser? mas não deixa de ser uma redundância engraçada.
A chuva, sobretudo as primeiras após o calor do Verão, têm a vantagem de lavar o que está cheio de pó e terra - desde as folhas de arbustos e árvores até os telhados das casas.
Também traz o cheiro a terra que finalmente foi regada após meses de seca.

Mas seguem-se os acidentes nas estradas, as constipações, dores no corpo dos mais velhos...
Começam todos os preparativos para o Inverno que há-de vir: outros sapatos, meias, casaquinhos e casacos... pronto, relembrando uma nova roupagem.

Para os mais abastados ou vaidosos, novas compras nas lojas.
Tudo isso faz lembrar o que será nos países tropicais. Geralmente pessoas pobres para estas compras que, afinal, nem precisam muito - mas o seu aspecto alegre e simples não deixa de estar associado às imagens da devastação dos tufões, ciclones e aparentados.
Sem dúvida, este país é privilegiado. Mesmo um "jardim à beira-mar". A chuva, entretanto, deu lugar a céu nublado e sol muito pálido.

Fecham-se os chapéus de chuva e param as corridas entre semáforos e lojas e escolas.
As estradas vão secando e sobram os traumatizados dos acidentes e carros para sucata, mais as contas para pagar e seguros.
Vendo assim um simples dia de chuva (nem sequer chuva forte), ficamos a pensar na coragem dos que enfrentam tempestades.

Da sua coragem e lucidez perante a obra das suas vidas.
Por cá, nem compreendem a necessidade de andar mais cuidadosamente.
Será que a facilidade gera relaxe? Será que as dificuldades aguçam o melhor que os seres humanos têm?
Em que consiste então a felicidade de viver esta vida? No vencer desafios constantes da própria vida ou no relaxe de nem sequer pensar em levá-la a bom termo?
Uma coisa é certa. O ser humano e muitos outros seres vivos, têm forças e capacidade de viver que nem suspeitam.

2006-10-01

Teixeira de Pascoaes # Antiga Dor (excerto)

1 de outubro de 2006
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A última fronteira, o último horizonte,
Onde a Essência aparece e a Forma terminou...
O sítio onde se muda a natureza inteira
Nessa infinita Luz que a mim me deslumbrou!...
O indefinido, a sombra, a nuvem, o apagado,
O limite da luz, o termo dum amor
Tornou o meu olhar saudoso e magoado,
Na minha vida foi minha primeira dor...
Mas hoje, que o segredo oculto da Existência,
Num momento de luz, o soube desvendar,
Depois que pude ver das Cousas a essência
E a sua eterna luz chegou ao meu olhar,
Meu infinito amor é a Alma universal,
Essa nuvem primeira, essa sombra d’outrora...
O Bem que tenho hoje é o meu antigo Mal,
A minha antiga noite é hoje a minha aurora!...
.
de Teixeira de Pascoaes
in "Sempre"