C. S. Lewis # O Cavalo e o Seu Rapaz
22 de outubro de 2006
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Oh, por favor... por favor, vai-te embora. Que mal te fiz? Oh, sou a pessoa mais infeliz do mundo!
Mais uma vez sentiu o bafo quente da Coisa na mão e no rosto e ouviu-a dizer:
- Vês? Isto não é o hálito de um fantasma. Diz-me o que te aflige.
Aquele hálito tranquilizou um pouco Xassta. Por isso lhe contou como nunca conhecera o pai e a mãe e como tinha sido duramente criado por um pescador. Depois contou a história da fuga, como tinham sido perseguidos por leões e obrigados a nadar para salvar a vida; e falou de todos os perigos de Tashbaan, da noite passada entre os Túmulos e de como os animais vindos do deserto o haviam ameaçado com os seu uivos. Falou ainda do calor e da sede da viagem pelo deserto e de como estavam quase a chegar ao destino quando outro leão os perseguira e ferira Arávis. E também de como não comia nada há muito tempo.
- Não acho que sejas infeliz – disse a Voz Profunda.
- Não achas que foi pouca sorte encontrar tantos leões?
- Só havia um leão – respondeu a Voz.
- Que queres dizer? Acabei de te contar que havia pelo menos dois na primeira noite e...
- Só havia um, mas era rápido de pés.
- Como sabes?
- O leão era eu. – Xassta ficou de boca aberta, sem saber o que dizer, e a Voz prosseguiu: - Eu era o leão que te forçou a reunires-te a Arávis. Eu era o gato que te reconfortou entre as casas dos mortos. Eu era o leão que afugentou os chacais enquanto dormias. Eu era o leão que deu novas forças aos cavalos nos últimos quilómetros para que tu chegasses a tempo junto do Rei Lune. E eu era o leão de que não te recordas e que empurrou o barco onde te encontravas, uma criança às portas da morte, de modo que chegaste a terra, onde estava um homem sentado, acordado à meia-noite, para te receber.
- Então foste tu que feriste Arávis?
-Fui.
-Mas para quê?
- Criança – respondeu a Voz -, estou a contar-te a tua história, não a dela. Só conto a cada pessoa a sua própria história.
- Quem és tu? – perguntou Xassta.
- Eu mesmo – respondeu a Voz, tão profunda e tão surda que a terra tremeu. – Eu mesmo – repetiu de uma forma nítida, sonora e alegre. – Eu mesmo – repetiu pela terceira vez, num murmúrio tão doce que era quase inaudível, embora parecesse provir de tudo o que havia em redor, como trazido pelo sussurrar das folhas.
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Aproxima-te, Arávis, minha filha. Vê! As minhas patas parecem de veludo. Desta vez não serás arranhada.
- Desta vez? – perguntou Arávis.
- Fui eu que te feri. Sou o único leão que encontraste em todas as tuas viagens. Sabes por que te arranhei?
- Não.
- Os arranhões nas tuas costas, golpe por golpe, dor por dor, sangue por sangue, foram iguais aos vergões que ficaram nas costas da escrava da tua madrasta devido à droga que lhe deste para adormecer. Precisavas de saber o que se sente.
- Sim, estou a ver. Por favor...
- Pergunta, minha querida.
- Ela vai sofrer mais devido ao que eu lhe fiz?
- Criança – respondeu o Leão – estou a contar-te a tua história, e não a dela. ... ...
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