Aviso prévio
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Os excertos que serão aqui reproduzidos ao Domingo, em Fevereiro, são retirados da obra «O Meio Divino» do padre jesuíta Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955), da edição da Editorial Presença, Lisboa, Colecção Síntese, s.d., e a selecção é da minha responsabilidade.
Segunda Parte – A Divinização das Passividades
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As passividades, como lembrámos no começo deste estudo, formam a metade da existência humana. As passividades acompanham sem cessar as nossas operações conscientes como reacções que dirigem, apoiam ou contrariam os nossos esforços.
Nós conhecemo-nos e dirigimo-nos num círculo incrivelmente reduzido. Imediatamente para além desse círculo começa uma noite impenetrável, e, no entanto, carregada de presenças, - a noite de tudo o que está em nós e à volta de nós, sem nós e contra a nossa vontade. Aí estão as trevas, carregadas de promessas e de ameaças, que o cristão terá de iluminar e animar com a Divina Presença.
Parece-nos tão natural o crescer que, ordinàriamente não pensamos em distinguir da nossa acção as forças que a alimentam nem as circunstâncias que favorecem o seu êxito. No entanto «que tens tu que antes não tenhas recebido?». Tanto ou mais que a Morte, recebemos passivamente a Vida. Penetremos no recanto mais secreto de nós mesmos. Examinemos de todos os lados o nosso ser. Procuremos aperceber-nos com vagar do oceano de forças recebidas passivamente em que está como que imerso o nosso crescimento. É um exercício salutar.
Ora pois, talvez pela primeira vez na minha vida (eu, considerado como alguém que faz meditação todos os dias!) peguei na lâmpada, e deixando a zona, aparentemente clara das minha ocupações e das minhas relações quotidianas, desci ao mais íntimo de mim mesmo, ao abismo profundo donde sinto confusamente que emana o meu poder de acção. Ora, à medida que me afastava das evidências convencionais com que é superficialmente iluminada a vida social, notei que me escapava a mim mesmo. A cada degrau descido, descobria-se em mim um outro personagem, cujo nome exacto já não podia dizer e que já não me obedecia. E quando tive de parar na minha exploração, por me faltar o terreno debaixo dos pés, deparava-se-me um abismo sem fundo donde saía, vinda não sei donde, a onda a que me atrevo a chamar a minha vida.
Que ciência poderá jamais revelar ao Homem, a origem, a natureza, o regime do poder consciente de querer e de amar, de que é constituída a vida? Não foi o nosso esforço, com certeza, nem o esforço de ninguém à nossa volta, que desencadeou esta corrente. Em última análise, a vida profunda, a vida fontal, a vida nascente furtam-se absolutamente à nossa apreensão.
E então, perturbado com a minha descoberta, quis voltar á luz, quis esquecer o inquietante enigma no confortável ambiente das coisas familiares, - recomeçar a viver à superfície sem sondar imprudentemente os abismos. Mas eis que, sob o próprio espectáculo das agitações humanos, eu vi reaparecer diante dos meus olhos experientes, o Desconhecido de quem queria fugir. Desta vez, não se ocultava no fundo de um abismo: agora, dissimulava-se por detrás da multidão dos acasos entrecruzados de que é tecida a teia do Universo e a da minha humilde individualidade. Mas era realmente o mesmo mistério: eu identifiquei-o. O nosso espírito perturba-se quando tentamos medir a profundeza do Mundo abaixo de nós. Mas vacila também quando tentamos contar a s sortes favoráveis de cuja influência resulta, a cada instante, a conservação e o perfeito desenvolvimento do menor dos seres vivos. Depois de ter tomado consciência de ser um outro e um outro maior do que eu – uma segunda coisa me causou vertigens: foi a suprema impossibilidade, a formidável inverosimilhança de me encontrar a existir no seio de um Mundo realizado com êxito.
Neste momento, como qualquer que quiser fazer a mesma experiência interior, senti pairar sobre mim a angústia essencial do átomo perdido no Universo, – a angústia que faz sossobrar diàriamente vontades humanas debaixo do número esmagado dos seres vivos e dos astros. E se alguma coisa me salvou, foi o ouvir a voz evangélica, garantida por êxitos divinos, que me dizia, do mais profundo da noite: «Sou eu, não tenhas medo».
As forças de diminuição são as nossas verdadeiras passividades. O seu número é imenso, as suas formas infinitamente variáveis, a sua influência contínua. Em certo sentido, é de pouca importância o escaparem-se-nos as coisas, porque podemos sempre imaginar que elas nos voltarão às mãos. O terrível para nós é o escaparmos nós às coisas por uma diminuição interior e irreversível.
Humanamente falando, as passividades de diminuição internas formam o resíduo mais negro e mais desesperadamente inutilizável dos nossos anos. Na morte, como num oceano, vêm confluir as nossas bruscas ou graduais diminuições. A morte é o resumo e a consumação de todas as nossas diminuições: ela é o mal – mal simplesmente físico, na medida em que resulta orgânicamente da pluralidade material em que estamos imersos, – mas mal moral também, na medida em que essa pluralidade desordenada, fonte de todo o choque e de toda a corrupção, é gerada, na sociedade ou em nós mesmos, pelo mau uso da nossa liberdade. A qualquer instante, por mais comprometida pelos nossos pecados ou por mais desesperada que esteja pelas circunstâncias a nossa situação, podemos sempre por uma completa reparação, reajustar o Mundo à volta de nós e retomar favoràvelmente a nossa vida.
Perguntemo-nos, pois, como, e em que condições, as nossas mortes aparentes, isto é, as escórias da nossa existência podem ser integradas no estabelecimento, à volta de nós, do Reino e do Meio divinos.
Deus não pode, mesmo em virtude das sua perfeições ¹, fazer com que os elementos de um Mundo em vias de crescimento, – ou pelo menos de um Mundo caído em vias de soerguer-se, escapem aos choques e às diminuições mesmo morais.
A Cruz foi sempre um sinal de contradição e um princípio de selecção entre os Homens. Onde ela aparece são inevitáveis efervescências e oposições. Demasiadas vezes a Cruz é apresentada à nossa adoração não como um fim sublime que devemos atingir ultrapassando-nos a nós mesmos, mas como um símbolo de tristeza, de restrição e de recalcamento. Esta maneira de pregar a Paixão é devida simplesmente, em muitos casos, ao emprego infeliz de um vocabulário pio em que as palavras mais graves (como sacrifício, imolação, expiação) esvaziadas do seu sentido pela rotina, são empregadas com uma ligeireza e um à-vontade inconscientes. Brinca-se com fórmulas. Mas esta maneira de falar acaba por dar a impressão de que o Reino de Deus não se pode estabelecer senão num ambiente de luto, indo constantemente contra a corrente das energias e das aspirações humanas. Apesar da exactidão das palavras, no fundo, não há nada menos cristão que essa perspectiva.
Tomada no seu sentido mais alto de generalidade, a doutrina da Cruz é aquela a que adere todo o homem persuadido de que, perante a imensa agitação humana, se abre um caminho em direcção a uma saída, e que este caminho é a subir. A vida tem um termo: portanto exige uma direcção de marcha, que de facto se encontra orientada para a mais elevada espiritualização por meio do maior esforço.
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¹ Porque as suas perfeições não poderiam ir contra a natureza das coisas, e a natureza de um Mundo suposto em vias de aperfeiçoamento, ou «em re-ascensão», é exactamente o estar ainda parcialmente desordenado. Um Mundo que não apresentasse já traços nem ameaça de Mal, seria um Mundo já consumado.
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