Teilhard de Chardin # O Meio Divino - Parte II
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As passividades, como lembrámos no começo deste estudo, formam a metade da existência humana. As passividades acompanham sem cessar as nossas operações conscientes como reacções que dirigem, apoiam ou contrariam os nossos esforços.
Nós conhecemo-nos e dirigimo-nos num círculo incrivelmente reduzido. Imediatamente para além desse círculo começa uma noite impenetrável, e, no entanto, carregada de presenças, - a noite de tudo o que está em nós e à volta de nós, sem nós e contra a nossa vontade. Aí estão as trevas, carregadas de promessas e de ameaças, que o cristão terá de iluminar e animar com a Divina Presença.
Parece-nos tão natural o crescer que, ordinàriamente não pensamos em distinguir da nossa acção as forças que a alimentam nem as circunstâncias que favorecem o seu êxito. No entanto «que tens tu que antes não tenhas recebido?». Tanto ou mais que a Morte, recebemos passivamente a Vida. Penetremos no recanto mais secreto de nós mesmos. Examinemos de todos os lados o nosso ser. Procuremos aperceber-nos com vagar do oceano de forças recebidas passivamente em que está como que imerso o nosso crescimento. É um exercício salutar.
Ora pois, talvez pela primeira vez na minha vida (eu, considerado como alguém que faz meditação todos os dias!) peguei na lâmpada, e deixando a zona, aparentemente clara das minha ocupações e das minhas relações quotidianas, desci ao mais íntimo de mim mesmo, ao abismo profundo donde sinto confusamente que emana o meu poder de acção. Ora, à medida que me afastava das evidências convencionais com que é superficialmente iluminada a vida social, notei que me escapava a mim mesmo. A cada degrau descido, descobria-se em mim um outro personagem, cujo nome exacto já não podia dizer e que já não me obedecia. E quando tive de parar na minha exploração, por me faltar o terreno debaixo dos pés, deparava-se-me um abismo sem fundo donde saía, vinda não sei donde, a onda a que me atrevo a chamar a minha vida.
Que ciência poderá jamais revelar ao Homem, a origem, a natureza, o regime do poder consciente de querer e de amar, de que é constituída a vida? Não foi o nosso esforço, com certeza, nem o esforço de ninguém à nossa volta, que desencadeou esta corrente. Em última análise, a vida profunda, a vida fontal, a vida nascente furtam-se absolutamente à nossa apreensão.
E então, perturbado com a minha descoberta, quis voltar á luz, quis esquecer o inquietante enigma no confortável ambiente das coisas familiares, - recomeçar a viver à superfície sem sondar imprudentemente os abismos. Mas eis que, sob o próprio espectáculo das agitações humanos, eu vi reaparecer diante dos meus olhos experientes, o Desconhecido de quem queria fugir. Desta vez, não se ocultava no fundo de um abismo: agora, dissimulava-se por detrás da multidão dos acasos entrecruzados de que é tecida a teia do Universo e a da minha humilde individualidade. Mas era realmente o mesmo mistério: eu identifiquei-o. O nosso espírito perturba-se quando tentamos medir a profundeza do Mundo abaixo de nós. Mas vacila também quando tentamos contar a s sortes favoráveis de cuja influência resulta, a cada instante, a conservação e o perfeito desenvolvimento do menor dos seres vivos. Depois de ter tomado consciência de ser um outro e um outro maior do que eu – uma segunda coisa me causou vertigens: foi a suprema impossibilidade, a formidável inverosimilhança de me encontrar a existir no seio de um Mundo realizado com êxito.
Neste momento, como qualquer que quiser fazer a mesma experiência interior, senti pairar sobre mim a angústia essencial do átomo perdido no Universo, – a angústia que faz sossobrar diàriamente vontades humanas debaixo do número esmagado dos seres vivos e dos astros. E se alguma coisa me salvou, foi o ouvir a voz evangélica, garantida por êxitos divinos, que me dizia, do mais profundo da noite: «Sou eu, não tenhas medo».
As forças de diminuição são as nossas verdadeiras passividades. O seu número é imenso, as suas formas infinitamente variáveis, a sua influência contínua. Em certo sentido, é de pouca importância o escaparem-se-nos as coisas, porque podemos sempre imaginar que elas nos voltarão às mãos. O terrível para nós é o escaparmos nós às coisas por uma diminuição interior e irreversível.
Humanamente falando, as passividades de diminuição internas formam o resíduo mais negro e mais desesperadamente inutilizável dos nossos anos. Na morte, como num oceano, vêm confluir as nossas bruscas ou graduais diminuições. A morte é o resumo e a consumação de todas as nossas diminuições: ela é o mal – mal simplesmente físico, na medida em que resulta orgânicamente da pluralidade material em que estamos imersos, – mas mal moral também, na medida em que essa pluralidade desordenada, fonte de todo o choque e de toda a corrupção, é gerada, na sociedade ou em nós mesmos, pelo mau uso da nossa liberdade. A qualquer instante, por mais comprometida pelos nossos pecados ou por mais desesperada que esteja pelas circunstâncias a nossa situação, podemos sempre por uma completa reparação, reajustar o Mundo à volta de nós e retomar favoràvelmente a nossa vida.
Perguntemo-nos, pois, como, e em que condições, as nossas mortes aparentes, isto é, as escórias da nossa existência podem ser integradas no estabelecimento, à volta de nós, do Reino e do Meio divinos.
Deus não pode, mesmo em virtude das sua perfeições ¹, fazer com que os elementos de um Mundo em vias de crescimento, – ou pelo menos de um Mundo caído em vias de soerguer-se, escapem aos choques e às diminuições mesmo morais.
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¹ Porque as suas perfeições não poderiam ir contra a natureza das coisas, e a natureza de um Mundo suposto em vias de aperfeiçoamento, ou «em re-ascensão», é exactamente o estar ainda parcialmente desordenado. Um Mundo que não apresentasse já traços nem ameaça de Mal, seria um Mundo já consumado.
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Disse Teilhard de Chardin : O fracasso canaliza a nosa seiva interior, distingue as componentes mais puras do nosso ser, de modo a projectar-nos para mais alto e mais rectamente !
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