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A CIDADE DO CANAL
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11 de Outubro de 1951
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Prometi uma vez retratar as sete cidades ou burgos em que vivi por mais tempo, e afinal não passei de umas duas. Tendo começado pela terra onde nasci, esqueci-me por lá em minudências saudosas.
Os naturais dos sítios são como os criminosos: voltam ao lugar do delito. Não que eu subscreva àquilo do poeta que diz, que «sempre o pior mal é ter nascido». O mal ou a culpa de Adão remiu-a Cristo com sangue – e Ele próprio se lustrou nas águas do baptismo, ainda que o Santo Espírito o tenha gerado sem mácula. Fora disso, não há mal algum em cá vir. Se o mal existe independente da consciência que o apreende e do coração que lhe dá campo, tal como o bem impassível, os homens de carne e osso os vivem e padecem – pois que o bem-proceder nasce de paixão levantada. Sem suor do rosto, sem alento e outros sinais de existência, como queixar-nos da vida? Isto de Mundo é irrecusável. Só há perdão para a repulsa do Mundo no anelo da Santa Cidade.
Ora, as minhas cidades não seriam santas, decerto, – que nem Jerusalém nem Roma me couberam, – mas eram as melhores que dar-se podiam a um vivo desenraizado. O mais importante nas memórias de homem um pouco peregrino é esse ponto dorido que o coração acusa quando se lembra do transplante. Partir, arrancar de um lugar, é pagar o preço da viagem, que sempre nos sai da pele. Morei em terras estranhas por largos lapsos de tempo e, apesar de as deixar para voltar às nossas, estremecia sempre. Vamo-nos semeando pelo mundo como um punhado de trigo que só numa única leira daria seara que se visse. E estes semeadores salteados, custa-lhes muito a ceifar... «Terra quanta vejas» – é o lema do morar e possuir.
Os pés de barro que tornam o recordar vulnerável são o «eu fiz», «eu aconteci», forçosos na recordação. Mas já me desenganei; – pois, como oficial de escrever e de falar, tenho de me agarrar ao pronome antipático e ostensivo: «eu», «eu» a torto e a direito... Como o bom carpinteiro não larga a plaina da mão, o escritor, mais que a pena ou o teclado da máquina de escrever, não pode largar o «eu». «Que me arrancan mi yo!» gostava Unanumo de gritar, creio que com Michelet. A primeira pessoa do plural, aliás, também não fica bem a quem não apascente ovelhas de redil humano. Oh ! o emprego dos pronomes: a eterna história de O Velho, o Rapaz e o Burro...
Mas dizia eu que o arranque do sítio onde vivemos resume o pó da jornada, fá-lo tragado e sufocante como nenhuma outra curva do caminho. Lembro as pequenas torres das igrejas e da Câmara da Praia, na ilha Terceira, que, deixadas ao alto da Boa Vista, me pareciam sepultar nos seus alicerces de tufo as casas dos meus e dos vizinhos, a escola, as ruas do trânsito e da gandaia, o cais e o areal dos sonhos. Eu chegava a Angra e, pouco a pouco, outras torres, – maiores e tão duramente históricas, que duas delas, as da igreja do Castelo, campeavam entre torreões que haviam sido estrangeiros, assestando bocas de fogo sobre os naturais da ilha inermes, – começavam a organizar em torno de mim a intimidade, a confiança, e dali a bem pouco o apego. Alguns anos bastaram para me naturalizar ali. E confesso até, que, apesar de ter feito o meu transplante num palmo redondo de ilha, nunca uma aclimação me custou mais do que essa.
As raízes então violentadas eram as mais tenazes, as primeiras. Depois, lentamente, a planta humana vai-se acostumando a que o destino, que é jardineiro, a «disponha», – e acaba por ter o seu sistema de implante como que em estado de alarme. Umas gotas de água de rega chegam para lhe tornar algum viço.
Mas dói, custa sempre... Recordo-me mesmo de que a minha segunda transplantação, a de uma ilha para outra, foi que me deu o tema para reviver a terceira, – então já um salto grave, quase transoceânico, das ilhas para estas nossas portuguesas paragens, a que nós, os ilhéus, chamamos «o Continente», de um ponto de vista telúrico que deve ter seu sentido em etnopsicologia. E é curioso que a evocação da largada decisiva tenha surgido noutro transe crucial de filho pródigo: a minha primeira fixação no estrangeiro.
A sempre-mesma visão da terra deixada, em panorama, parecia levar, com o apartamento, a carne do saudoso aderida ! Era outra vez toda a planta arrancada que se retraía e sentia murchar pouco a pouco. Algo assim como estas modestas largadas deve ser o passo do rio de Caronte. A uma perspectiva negra, de eclipse e de fim de mundo, sucederá, mediante a transição adequada, a adesão gradual à perspectiva nova que nos vai convidando e absorvendo. Não custa estar... ser objecto de censo demográfico, de recolher e de alvorada, de almoço, de sesta e ceia. O que dói é tornarmo-nos de repente sujeitos do mundo concluso e ausente, juízes na própria causa subitamente processada ali diante de nós... naquelas casas do amor e do hábito que fogem... que se aninham ao longe e é em nós que se comprimem.
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excerto cap. X in "Corsário das Ilhas", Bertrand, 1956
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Disse Jules Renard : escrever é uma maneira de falar sem ser interrompido !
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