Escritos de Eva

Aqui Eva escreve o que sonha e - talvez - não só. Não tem interesses de qualquer tipo nem alinhamento com sociologias, política, religião ou crenças conformes às instituições que conhecemos. Estes escritos podem servir de receita para momentos de leveza, felicidade ou inspiração para melhorar cada dia com bons pensamentos. Alguns poemas ou textos... Algumas imagens ou fotos... Mulheres e homens, crianças e idosos podem ler Eva e comentar dando a sua opinião.

2008-03-31

Geralmente é assim!

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Eles estão à conversa no muro do café, ali em frente.
- Ao tempo! É porque podem porque agora são reformados!
- Reformados do quê? Eram agricultores e continuam a ser agricultores!
- Olhem, isso já não sei, ou melhor, do pouco que por acaso sei, só digo que se não fosse a quintinha, não tinham para comer!
- Isso sim! Até trocam os produtos entre eles para não comerem sempre o mesmo! - O que eles comem sempre é um prato de sopa e um bocado de pão!
- A felicidade deles é quando vêem os netos! Fazem companhia e entendem-se perfeitamente!
- Aí está a diferença maior entre gerações e não faz diferença nenhuma. E por vezes as gerações mais próximas, essas sim… são um problema!
- Lá estão eles a dividir as alfaces, batatas, limões, etc.
- Já viste a simplicidade?
- Geralmente é assim! Quem precisa, não reclama! E quanto mais se padece, mais silencioso fica!
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Fotografia de Oshin D. Zakarian
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Disse Oscar Wilde : O pessimista é uma pessoa que, podendo escolher entre dois males, prefere ambos !
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2008-03-30

Vitorino Nemésio # Verbo e Abismo

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Já da vaga vocálica dependo
Como a alga que a onda leva à areia:
Mas eu mesmo, que a digo, mal entendo
A voz que clama a minha vida e a enleia.

Se intervenho no som gratuito, ofendo
Seu sentido secreto e íntima cheia:
Transtornado por ela, emendo, emendo,
E é ela que me absorve e senhoreia.

Verbo ao abismo idêntico, toado
Sobre os traços de fogo que precedem
A presença de Deus no monte irado,

Ao teu sopro de amor as vozes cedem
O que a morte decifra e restitui
Ao espírito liberto do que fui.
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In “O Verbo e a Morte”
1959, Livraria Morais Editora
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Disse Fernando Pessoa : o poeta vale aquilo que vale o seu melhor poema !
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2008-03-29

O grito

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É uma espécie de bolha de ar que sobe. Mas não sobe, afinal agora desce!
Depois parece subir outra vez. E outra… e outra…
Finalmente conseguiu subir. Vem do fundo, da zona do umbigo até à garganta.
E pronto… finalmente o soluço! Mas não é um soluço do estômago. É um soluço de choro. Do choro que se trava e tenta paralisar.
Os olhos aguentam as lágrimas… e a garganta faz descer a bolha de ar. E o choro aguenta-se outra vez!
Mas, não sei do quê, se do ar frio na cara, se das flores que oscilam entre a folhagem, se daquele gatito ali no muro… de repente não é mais um soluço!
É um grito, um grito que estremece tudo à sua volta, como uma onda de choque e as lágrimas caem, logo de seguida, em torrente.
Olha, é tudo ilusão! Na realidade, olhando ao espelho, só os olhos estão diferentes.
Foi tudo lá dentro… tão fundo… solitário!
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Hadidjah Shortridge
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Disse Miguel de Unamuno : O solitário leva uma sociedade inteira dentro de si !
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2008-03-28

O gato

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A senhora vivia sózinha há já muitos anos e, nessa solidão, ficou com um gato.
A dedicação era grande entre um e outro e o gato fazia-lhe muita companhia.
Um dia, sem mais nem ontem, a senhora caíu no chão e não se levantou.
A vizinha ouviu um barulho e como não a ouviu mais nem a viu nos horários dos encontros costumeiros, resolveu ir bater à porta.
Ninguém respondeu, telefonou para a filha e, mais que tarde, foi chamada a ambulância.
A senhora acabou por recuperar o possível, mas está impossibilitada de cuidar de si mesma; tornou-se dependente.
O gato, entretanto na casa vazia, ficou sem comer nem beber dias e dias. Finalmente a vizinha lembrou-se dele. A filha já resolveu o «problema» e vai dá-lo a quem o cuide.
A senhora está à espera de vaga para ir para um lar.
Vai chorando baixinho, muito calada e solitária. Não se lembra dela nem de ter perdido a casa ou a independência.
Chora pelo gato - se o trataram bem e sente-se ingrata por não lhe devolver tudo o que ele lhe deu: companhia e alegria; o que ninguém lhe dá!

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Imagem retirada da net
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Disse Mark Twain : o homem é o único animal que cora - ou que precisa de o fazer !
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2008-03-27

Estar bem

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Todos juntos numa sala a ver televisão. E são muitos, todos aconchegados em mantas.
Muitas visitas, muitos doces e cheirinho a quentes - chás, leites e chocolates. Enfim, um "apetece ficar" que não pode ser muito demorado, porque a tarde ainda tem que render muito trabalhinho.
Lá fora vão passando roulotes e caravanas em fila - é verdade, este fim de semana é prolongado para muitos.
Para estes outros, muitos também, o tempo é de estarem juntos a conversar, a lanchar e a ver televisão. Ah, lá ao fundo joga-se uma partida de xadrez.
Às vezes não é preciso ir longe para se ficar bem.
Estamos bem onde está bem o nosso coração, não é?

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Imagem retirada da net
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Disse Fernando Pessoa : o homem não sabe mais do que os outros animais; sabe menos. Eles sabem o que precisam saber. Nós não !
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2008-03-26

Horários

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Almoços combinados, geralmente festivos ou de trabalho.
Nos dias, chamados úteis, estes almoços são rápidos e, ao mesmo tempo, tratam de tudo o que é necessário tratar.
Os dias úteis, no entanto, já não são os de 2ª a 6ª, porque com os horários de trabalho desdobrado, todos os dias, incluindo feriados e noites, são úteis porque todos são de trabalho.
Cada vez mais os tempos de trabalho são mais prolongados sem que os ordenados sejam maiores pois, pelo contrário, há mais gente trabalhadora a rodar mas em horário menor e sem intervalos; são horários seguidos.
Enfim, tudo está sempre a mudar, tanto na sociedade como em nós próprios.

Entretanto o almoço chegou ao fim e, nas despedidas, começou a chover.
Noutro lado, perto de casa, parou de pingar.
Com este clima é aconselhável o chapéuzinho e o protector solar porque ora chove ora se faz sentir o calor forte do sol.
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Imagem retirada da net
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Disse Albert Einstein: para ser membro imaculado de um rebanho de ovelhas, é preciso, acima de tudo, ser uma ovelha !
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2008-03-25

Confusão

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O corpo, por vezes, dá a sensação de não ser nada, de não valer nada!
Não se trata de doer aqui ou ali, trata-se de ser um mal-estar geral.
Daqueles mal-sentir que nem se sabe se é do corpo ou do ar que o rodeia, ou do sofá, ou do quarto...
É um arfar descoroçoado sem ser falta de ar. É uma confusão mental em que não se distingue o sonho do pesadelo. E se abrir os olhos, pior, porque afinal está ali mesmo, onde já estava há uma hora atrás... Onde estava desde o almoço... Exactamente ali!
- Adormeceu?
- Eu? Não! Porque haveria de ter adormecido? Não tenho os olhos abertos?
- Agora tem, mas há bocadinho não tinha. Trouxe uma manta para não lhe arrefecerem as pernas.
- Ah, pois está melhor, está! Obrigado!
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Henri Rousseau
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Disse Platão : Mau, na verdade, é o amante vulgar que prefere o corpo ao espírito, pois o seu amor não é duradouro por não se dirigir àquilo que perdura !
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2008-03-24

Chove chuva

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"Chove chuva" e, por qualquer razão, lembro-me do filme do Bambi a olhar espantado para a primeira chuva da sua vida.
A natureza, naquele género de filmes, é retratada na sua beleza e esplendor.
A chuva lava tudo, mas também encharca tudo.
- Tudo, menos as ideias, por isso posso continuar a trabalhar - mentalmente.
- Pois! Os trabalhos que exigem mais esforço físico, no exterior, nestes dias não valem nada. Nada, nadinha! As árvores não se podem tratar e a terra não se pode mexer, porque a chuva não deixa assentar nada.
- Mas dá para preparar aqueles cozinhados bem cheirosos.
- Sim, sim, vou já assar os chouriços e ver se o pão ainda está quente.
- E eu vou fechar a porta, senão como posso concentrar a mente, com a casa a cheirar a petisco?
- Sempre ouvi dizer que trabalho é trabalho...
- Sim, mas a pessoa ainda sofre emoções.
- Ahhh! Pois sofre, sofre! Mas também é verdade que deve pensar com o coração - educadamente!
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Georges Braque
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Disse Mahatma Gandhi : vive de forma mais simples de modo que os outros possam simplesmente viver !
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2008-03-23

Vitorino Nemésio # Relações de Incerteza

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..................I

É esse o desejado coração,
A paz de folhas em branco?
Mas abro a palma da mão
E é como se fosse manco.
Tudo pergunto em decúbito,
Como um ensaio de morto:
Sinto-me vão de súbito,
Navio longe do porto.
Talvez, mudando o ritmo à vela, expanda
As moléculas ácidas que me tolhem.
A minha vida não anda.
Chove. As aves recolhem.
O céu é um cogumelo radioactivo,
O mar petróleo sem peixes.
Homem, eu, de ti cativo,
Só te peço que me deixes!
Guarda-me em pó, electrifica-me,
Trata-me a equação provável:
Sou o teu gás de sonho – quantifica-me,
Homem, mais que o fumo, instável.
No dia, no dia (digo)
Entrópico, falaremos:
Espera-nos a morte
Na última bolha fria
Da caldeira estoirada,
No positrão oriundo de um urânio exaurido,
Com orbe, coração e o dizê-lo – perdido.
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........................II


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Em todo o caso, em todo o caso,
Ainda um talvez,
Como em Boltzmann e Gibbs a vastos formalismos:
Uma poeira astral era uma vez
E foi-se pelo y dos abismos.
Mas logo outra galáxia calculada
O vermelho longínquo condensou.
Eu digo por hipótese: Do nada,
Deus, que é cálculo e amor, tudo tirou.
Que eu, se pudesse, ao giz pedia apenas,
Além da cal mortuária, o α carbónico
De um homem novo:
O meu filho electrónico,
Aliviado das minhas penas.
Mas, pra milagre tal, que é dele, o ovo?
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in "Limite de Idade"
Estúdios Cor, 1972
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Disse Rabidranath Tagore : cada criança que nasce traz consigo a mensagem de que Deus ainda não perdeu a fé no homem !
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(α = alfa. Primeira letra dos alfabetos grego e siríaco. Usa-se para designar o princípio, o início)
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2008-03-22

Pedra angular

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Desilusão e até desespero. Desapontamentos de saber que se está no sítio certo para ser tratado e não ligarem importância.
Tudo o que é simples e humilde é, não digo maltratado, mas ignorado.
Em todos os sítios parece ser a regra: se não transpira importância, se não se tem estatuto, parece que se torna invisível.
E se se acrescentar à simplicidade, qualquer espécie de padecimento, pior ainda é o abandono.
É um sentimento de desamparo que se cola bem colado e parece apertar, espremer o ser por dentro, numa angústia que, se a deixarmos, se torna poderosa. Nesses momentos, nessas horas difíceis, surge a ideia de que tudo é aproveitado na vida, e então, talvez a nossa situação sirva como exemplo para outros se corrigirem.

E um dia... talvez consigam olhar para baixo e dar a mão.
Pois se até os construtores rejeitaram, alhures no tempo, a "pedra angular" porque lhes pareceu sem importância para tal função...
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Diego Rivera
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Disse Anatole France : A majestosa igualdade da lei proibe tanto os ricos como os pobres de dormir debaixo da ponte !
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2008-03-21

Fotografias

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As montagens fotográficas têm, pelo menos, duas vertentes: a de recuperação de fotos irreconhecíveis de familiares e amigos que já não podem ver a não ser pela «magia» da fotografia, e a da fantasia e criatividade, em que se inventam situações, só pelo gosto e recreio de o fazer, embora utilizando, por vezes, pessoas menos precavidas e que, de boa mente, dão a sua fotografia ou a enviam, sem saber tudo a que se sujeitam a partir daí.
Ilusionistas das imagens, produzem situações de pesadelo ou de sonho.
Hoje, mais do que nunca, a tecnologia permite um mundo de possibilidades.
Cabe a cada um a responsabilidade do que faz.
Por mim, é bom poder olhar para imagens de pessoas que foram tão (mas tão!) importantes para mim.
E como tiveram essa importância durante a minha infância, entre o afastamento geográfico e o afastamento temporal, restam-me as fotografias recuperadas e ampliadas para lhes distinguir as feições que, ainda hoje, me são tão queridas.

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Imagem de Isabel Filipe

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Disse Aldous Huxley : A memória de cada pessoa é a sua biblioteca privada !

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2008-03-20

Dificuldades

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Os problemas que todos vamos tendo, hoje e amanhã, ontem e pela vida fora, podem ser resolvidos, de tantos modos, quantos os tipos de problemas que há.
As nossas atitudes também influem não só nas soluções como também na rapidez da própria solução.
As duas atitudes mais habituais são a fuga ou ficar e enfrentar o problema.
Por fuga, entende-se tanto o querer ignorá-los, como ir embora para outro sítio, de armas e bagagens.
Seja qual for a atitude tomada, só a de enfrentar as dificuldades, com coragem e calma, é que tem a capacidade de resolução mais completa, de modo a que elas não apareçam mais tarde de outro modo.
No entanto, às vezes, é necessário saber esperar a altura mais propícia para reunir os elementos concorrentes a uma boa solução.
Porque problemas todos temos e, segundo os estudiosos, eles dependem, em grande parte, da nossa personalidade.
Talvez seja por isso que sabemos de pessoas que os «atraem» e outras que os resolvem ainda antes destes se fazerem notados.
Como no ténis, há quem apare a bola com uma boa raquetada; e há quem nem veja vir a bola a tempo.
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Imagem retirada da net


Disse Ralph Emerson : Um problema sem solução é um problema mal colocado !
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2008-03-19

O impossível de hoje

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Em cores suaves e maravilhosas, estão uns átomos suspensos - ou serão planetas?
Parecem berlindes, diferentes porque uns são mais acastanhados, outros mais esverdeados, outros azulados, ou ainda amarelos ou brancos até ao transparente.
Estão ligados por fios ou elos e daí a dúvida se átomos, se planetas.
No entanto parecem-se mais com planetas e por tal serão considerados.
Faz-me pensar quantos sistemas e possibilidades nem sonhadas haverá nessa imensidão espacial, semelhantes ao nosso.
Serão presumivelmente habitados, e por quem? Piores ou melhores que nós?
Mais grosseiros ou mais moralizados?
Seja como for, um dia virá em que o impossível de hoje será o vulgar de amanhã.
O dia em que o tempo não existirá e o espaço nos aproximará a todos por igual e fraternalmente.
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Imagem retirada da net

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Disse Ray Bradbury : Nós somos uma impossibilidade num universo impossível !
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2008-03-18

Liberdade

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As divisórias amovíveis, como o nome indica, movem-se!
Podem ser paredes de vidro, que deixam passar a luz e permitem a comunicação entre as pessoas, em vez daquelas que dão a ideia de se trabalhar em "currais" no interior de salas enormes.
Estas dão vontade de imitar a publicidade dos desodorizantes de ar e fingir que há janelas abertas, a deixar passar flores e os perfumes entre o céu e a paisagem lá de fora.
A liberdade de cada um está no pensamento, que é sempre livre, dizem. Será?
E os que sofrem de ideias fixas ou de uma qualquer das mil e uma deficiências possíveis da mente?
Somos livres sempre que escolhemos sê-lo, e escolhemos se já merecemos essa escolha por todas as que fizemos anteriormente.
Sentimo-nos livres sempre que já o somos.
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Imagem retirada da net
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Disse Fernando Pessoa : primeiro sê livre; depois pede a liberdade !
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2008-03-17

Problemas

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– Credo! Tanta chuva, tudo alagado e aquela gente outra vez sem casa.
– E os carros, ou melhor, os carros e os camiões que se amontoam. Uns porque não passam, outros porque avariam.
– Pois estão! Estão todos parados sem saber o que fazer.
– Bem, como se costuma dizer... nas crises o melhor é ficar quieto a um canto à espera que a crise passe.
– Nem sempre! Havia de ser bonito! Metade da população ficava quieta e depois...
– É um modo de dizer que se deve ser paciente e ter esperança, creio eu...
– Mas se não tentarmos, não ultrapassamos os nossos problemas. É pela luta e pela perseverança que conseguimos passar. Olha, como aquele autocarro e o carro ali... foram os únicos que conseguiram passar!
– Isso foi porque um outro se deslocou agorinha mesmo e fez-se uma passagem que não havia. É o que te digo: é necessário paciência porque surge sempre um elemento novo que permite solucionar as coisas.
– Será! Mas geralmente vêm é outros que ainda pioram!
– Nesse caso, é preciso estar atento; vigilante, mesmo!
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Imagem retirada da net
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Disse Stanislaw Jerzy Lec : quando saltares de alegria, tem cuidado para que ninguém te tire o chão debaixo dos pés !

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2008-03-16

Vitorino Nemésio # Violão de Morro e 9 Romances da Bahia

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Violão de Morro e 9 Romances da Bahia

de Vitorino Nemésio, Lisboa, 1968

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Vitorino Nemésio # Romance de Xangô

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Lá em Matatu Pequeno
Uma cortina de cassa
Velava o Pègi de Anísia,
Iahorixá da Bahia.
Já aquedes e alabês
Enchem o casto terreiro
De bustos de bronze adustos
E corpetinhos de crivo.
Um cheiro a canela e a cravo
Paira, dos verdes de Oxóssi
Ao branco e azul de Nãnã:
Que teremos candomblé
Até romper a manhã.
Rum, rúmpi, lé já perfilam
Suas cordas de atabaques.
Um mugido de zebu
Vibra nas peles de carneiro,
Agasalha as velhas negras
Em saiote de sinhá,
E os dentes dos negros púberes
Em etéreas melancias
Destilam saliva e sumo.
A noite de oiro tornou
Meu rosto negro de fumo.
Ouvi um timbre de cobre:
É o xerê de Xangô.
Dàzinha, que o peito encobre,
Branca e vermelha, chegou.
É negra. Seu rosto duro
Parece o duplo machado
Que lhe talha os alvos ossos
Sob o véu da pele de sombra.
Terrível, firme, rodada,
A Filha do Raio assombra.
Dàzinha, quando iàô,
A sua lã de ovelhinha
Nas mãos de Anísia deixou.
Seu cabelo vira arame
De que tira os braceletes
Para dançar a Xangô.
Deixem-na! Deixem-na! Sobe
Nas fitas-de-cor do tecto
O relento das gargantas,
O casto aulido nagô.
Dàzinha, com os pés em leque
E as aspas das mãos nas ancas,
Como grávida de um deus,
Tenebrosa, começou.
Primeiro, peneira cravos
Na roda da sua saia;
Depois queima um seio vivo
Na chama do movimento;
Faz do outro seio cego
A carapaça do cágado
Grato a Xangô. E um galinho,
Com crista de fogo, cheira
A fogo no seu focinho.
Dança, dura e verdadeira,
Dàzinha no candomblé.
Xangô gosta de amalá:
E da terra do terreiro
(Batido, ressoa o chão)
Dàzinha, a ponta de pé,
Dançando, amassa pirão.
Sua aromas em seu busto
Perfumando o caruru:
É um anjo de azeviche
Que salta de canguru.
E eu, atônito, estrangeiro,
Sentindo um agbé nas veias,
Vejo tudo rosa e beje,
Encolhe-me ao seu girar:
Está jogando a Cabra-Cega;
Dança – e parece voar!
Não que tenha nada de ave,
Salvo de galo nagô,
Nem peninha meiguiceira
Seu corpo pesado alou.
Mas, porque dança esvoaçando
Como ave de trilho pobre,
Vejo-a avestruz de Nigéria
Nos braceletes de cobre.
Ao seu calcanhar de pau
O chão do terreiro é oco;
O deus bebe-lhe o suor
Mais doce que água de coco.
Pára, tonta, possuída,
Muge sagrada, escorrendo
Fúrias de Xangô dançadas,
Leões do Sudão morrendo.
Vejo tudo negro e beje;
Nas toalhas encharcadas,
Como quem embala fruta,
Chica seus seios protege.
Então, velando-lhe o rosto,
Como o do deus, falquejado,
O sacrifício e o desgosto
Arfam no peito suado.
Outra vez dança Dàzinha
O rito do fogo breve,
A lança da guerra preta
E o pilão da escravaria:
Pavlova, com véus e dedos,
Mais fundo não dançaria.
Até que, tendo prostrado
Su'alma de anéis e fugas
Em vénia à Iá do Alaqueto,
Seu corpo de ébano fica
Definitivo e quieto.
Outra vez Xangô a abrasa
Na viração da Bahia;
O diadema do caçoilo
Em sua fronte luzia.
As negras, fechando os olhos,
Comem pavios inteiros
Acesos no seu dançar;
E então, passando o caçoilo,
Alta, nutrida de lume,
Dàzinha vem me abraçar.
Não é coisa do outro mundo
Nem convite ao mestiçar:
É o «ritual muito limpo»
(Diz Pessoa) do deitar.
Passa-me os braços nas costas,
Tremenda, digna e direita;
Duas vezes seu pescoço
Toca o meu, pra mo sagrar,
Como quando à noite deita
O seu minino a ninar:
E lá vai, mais pura ainda,
Arder, arder e dançar.
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Oiçam agora! Não levem
Mais brancos ao candomblé!
Fechem a barra à Bahia,
Ponham Lévy-Bruhl no Index,
Queimem o Museu do Homem,
Esqueçam tudo: Pavlova
De pernas coregrafadas,
Hermes, a Antropologia,
A Psicanálise, Froboenius,
Gobineau, a Etnografia,
As religiões comparadas ...
Mas, pelo amor de Deus, não levem
Mais brancos ao candomblé!
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Dàzinha, Xangô virada,
Sendo negra, o Fogo é!
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in "Violão de Morro... e 9 Romances da Bahia"
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Disse Malcom Forbes : o objectivo da educação é transformar uma mente vazia numa mente aberta !
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2008-03-15

Cultura

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Estudos, pesquisas, investigações sobre temas, mais ou menos especializados.
Tempos mais ou menos gastos, mais ou menos demorados, mais ou menos aproveitados.
Mas tudo é necessário e, no cômputo final, é gratificante o que se aprende e os conhecimentos que se adquirem e vão completando as nossas ideias.
Enfim, uma culturazita especializada que vai acrescentar a cultura que a vida, por outros meios, vai permitindo.
Há pessoas que são "um poço de cultura", extasiando pela sua conversa e presença agradável, sempre renovada de interesse.
Há umas gerações atrás, tal só era conseguido a partir de certa idade; hoje, com os meios disponíveis, podemos encontrar jovens já com uma vasta cultura.
Isto corresponde a conhecimentos mais alargados e maiores possibilidades de investigação científica, por mais indivíduos ao mesmo tempo; e daí pressupõe-se mais progresso para a humanidade.
E a esperança de que os valores humanistas ultrapassem a importância dos economistas e políticos, vai-se mantendo acesa.
Apesar dos horrores que ouvimos ou lemos, há sempre a esperança que não seja sempre assim e que a mente vá manter-se aliada ao coração, sem grandes materialismos.
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Imagem retirada de http://europa.eu

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Disse
António Alçada Baptista : nasci em pleno reino do ter. Agora estamos no reino do fazer, mas tenho uma certa esperança de que um dia se alcance o reino do ser !
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2008-03-14

Pureza

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Uma borboleta branca voa por aqui e por ali, entre a folhagem e a janela do varandim.
- Lembra a pureza!
- Porquê?
- Ora, porque se associa fàcilmente o branco à pureza. É um hábito. Um pouco por todo o lado, o branco significa pureza!
- Sim, sim... desde os véus aos lenços... em todas as religiões... sim, é verdade que um pouco por todo o mundo.
- Em boa verdade deveria ser a transparência a simbolizar pureza, precisamente pela ausência de cor.
- Pois, mas aí diz-se cristalina, etc, não se fala em pureza. Voltando à borboleta, que tinha ela além da cor branca?
- Nada, voava como as outras mas notava-se mais por causa da cor. Dava nas vistas, era o que era...
- Ai, ai que voltamos ao mesmo. É que a pureza dá sempre nas vistas, umas vezes com repercussões boas e outras vezes com repercussões muito, muito abusivas.
- É. Tudo é dual!
- É verdade! Mas vamos desejar que acabem as vítimas da pureza!
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Imagem retirada da net, de mongabay.com
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Disse Georg Christoph Lichtenberg : Para muitas pessoas, a virtude consiste principalmente em arrepender-se dos erros, não em evitá-los !
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2008-03-13

Destino

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- Encontramos pessoas sempre enervadas ou inquietas. Outras, pelo contrário, estão calmas e sossegadas como se nada importasse.
- Isso depende da fé.
- Que tem a fé a ver com isto? É, sim, uma questão de metabolismo, adrenalina, tensão alta ou baixa, sei lá...
- Pois eu acho que é uma questão de fé, de que as coisas se complicam e resolvem na altura certa.
- Então não se faz nada e a vida pode ser um relaxe constante, de Segunda a Domingo.
- A vida é uma luta para produzir atitudes correctas, evitar erros e ser-se o mais íntegro possível em pensamentos e atitudes. E já é luta que chegue , com tanta maluqueira que se tem que aturar. Contudo, não é para ser o herói que resolve tudo e combate tudo e todos os que se atravessarem no seu caminho.
- Não exageres! Deve haver meio-termo algures. Senão é tudo o "destino"?
- Não é destino, é fé de que tudo se transforma constantemente, que tudo é energia palpitante e que, conforme se faz assim retorna. Fé em que existem leis que tudo regem, que não se compram nem se vendem nem prescrevem. São para ser cumpridas e viver a oportunidade de vida, sendo o melhor que conseguirmos ser.
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Imagem retirada da net
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Disse Luigi Pirandello : O homem está sempre disposto a negar aquilo que não compreende !
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2008-03-12

Um casamento

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Tão bonita como todas as noivas são; o tradicional vestido branco, com cauda e véu arrastando pelo chão.
Entre as nuvens e o céu azul, ela já vinha da cerimónia com o noivo-marido, lindíssima e risonha à espera do arroz que a madrinha lhe vai atirar, logo ali à frente.
A madrinha e a dama de honor eram suas amiga e filha, respectivamente, e estavam felizes com a sua felicidade.
O padrinho, também um grande amigo, tratava do transporte da filha, de a levar a horas e prepará-la para a festa que, para ela, era ainda uma surpresa. Uma boa surpresa.
Era um casamento há muito esperado e que correu bem, com muitos augúrios de felicidade.
O noivo nem queria acreditar que tal fora possível.
É assim que, às vezes esperamos tanto tempo pelas coisas, com tanta ansiedade que, quando acontecem, parece não haver lugar para tanta felicidade.
Parece faltar espaço e o ar, ou o oxigénio, para arranjar esse lugar no coração.
E os minutos podem ser horas e, a seguir, apenas instantes.
Mas são sempre pérolas de felicidade que não se esgotam.
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Imagem retirada da net
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Disse André Maurois : Um casamento feliz é uma longa conversa que nos parece sempre demasiado curta !
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2008-03-11

O melhor

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Hoje vi o primeiro botão de rosa branca no jardim.
Estava entre as folhas do jacarandá, meio protegido, meio ao vento e ao sol que já se faz sentir com força.
O jasmineiro também mostra alegremente as suas hastes ondulantes com os botões, em cacho, das suas florzinhas e já dá, ao ar que o rodeia, o seu perfume.
As árvores mostram "carradas" de folhas verde claro, mantendo ainda as mais velhas, mais abaixo e mais protegidas.
É a renovação da natureza. Das plantas aos pássaros, da terra e dos animais ao céu, cada dia mais azul e limpo de nuvens.
Parecem doses maciças de esperança, da renovação das maleitas em coisas boas, novamente.
Porque todos procuramos, a exemplo da Primavera, a felicidade renovadamente – instintivamente.
Todos procuramos sempre o melhor, que não é a mesma coisa que seguir uma ambição e deixá-la tornar-se desmedida.
O melhor é o conjunto das melhores qualidades que há em nós.
Mais íntimas ou mais superficiais, mas todos temos a nossa luz interior concentrando tudo o que é bom.
É só deixá-la aparecer (até transparecer) como os botões das flores.
E essa nossa luz pode então florescer de seguida.
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Pablo Picasso
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Disse Buda : Se pudéssemos ver com toda a clareza o milagre duma simples flor, toda a nossa vida mudaria !
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2008-03-10

Sonhos e pesadelos

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Sonhos e pesadelos. Pesadelos reais.
Às vezes não sabemos bem em qual vida estamos a viver; se na do pesadelo ou na que percebemos quando acordamos, tal é a sensação de realidade que temos.
E as pessoas... e as coisas... e as terras... se parecem conhecidas, também parecem diferentes, como que trocadas, do que nos lembramos.
Umas estão onde na realidade não estão; outras não estão lá, onde na realidade estão.
E o que as pessoas fazem também está trocado.
E nós mesmos fazemos o que não queremos - e que é impossível estarmos a fazer - mas somos nós, sem dúvida, apesar do aspecto ser como que «de outro tempo».
Há coisas que parecem justificar sensações, e até os sentimentos, que temos hoje em dia e que não tinham explicação até sonharmos aquele...humm... pesadelo.
- Sabes o que te digo?
- Sim?
- Que este texto não está a ser escrito agora. Ou já foi noutro tempo ou não existe ou não sou eu quem o escreveu.

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fotograma do filme Blade Runner

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Disse Philip Kindred Dick : a realidade é aquela coisa que, quando se deixa de acreditar nela, não desaparece !
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2008-03-09

Vitorino Nemésio # Corsário das Ilhas (cap. X)

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A CIDADE DO CANAL
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11 de Outubro de 1951
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Prometi uma vez retratar as sete cidades ou burgos em que vivi por mais tempo, e afinal não passei de umas duas. Tendo começado pela terra onde nasci, esqueci-me por lá em minudências saudosas.
Os naturais dos sítios são como os criminosos: voltam ao lugar do delito. Não que eu subscreva àquilo do poeta que diz, que «sempre o pior mal é ter nascido». O mal ou a culpa de Adão remiu-a Cristo com sangue – e Ele próprio se lustrou nas águas do baptismo, ainda que o Santo Espírito o tenha gerado sem mácula. Fora disso, não há mal algum em vir. Se o mal existe independente da consciência que o apreende e do coração que lhe dá campo, tal como o bem impassível, os homens de carne e osso os vivem e padecem – pois que o bem-proceder nasce de paixão levantada. Sem suor do rosto, sem alento e outros sinais de existência, como queixar-nos da vida? Isto de Mundo é irrecusável. Só há perdão para a repulsa do Mundo no anelo da Santa Cidade.
Ora, as minhas cidades não seriam santas, decerto, – que nem Jerusalém nem Roma me couberam, – mas eram as melhores que dar-se podiam a um vivo desenraizado. O mais importante nas memórias de homem um pouco peregrino é esse ponto dorido que o coração acusa quando se lembra do transplante. Partir, arrancar de um lugar, é pagar o preço da viagem, que sempre nos sai da pele. Morei em terras estranhas por largos lapsos de tempo e, apesar de as deixar para voltar às nossas, estremecia sempre. Vamo-nos semeando pelo mundo como um punhado de trigo que só numa única leira daria seara que se visse. E estes semeadores salteados, custa-lhes muito a ceifar... «Terra quanta vejas» – é o lema do morar e possuir.
Os pés de barro que tornam o recordar vulnerável são o «eu fiz», «eu aconteci», forçosos na recordação. Mas já me desenganei; – pois, como oficial de escrever e de falar, tenho de me agarrar ao pronome antipático e ostensivo: «eu», «eu» a torto e a direito... Como o bom carpinteiro não larga a plaina da mão, o escritor, mais que a pena ou o teclado da máquina de escrever, não pode largar o «eu». «Que me arrancan mi yo!» gostava Unanumo de gritar, creio que com Michelet. A primeira pessoa do plural, aliás, também não fica bem a quem não apascente ovelhas de redil humano. Oh ! o emprego dos pronomes: a eterna história de O Velho, o Rapaz e o Burro...
Mas dizia eu que o arranque do sítio onde vivemos resume o pó da jornada, fá-lo tragado e sufocante como nenhuma outra curva do caminho. Lembro as pequenas torres das igrejas e da Câmara da Praia, na ilha Terceira, que, deixadas ao alto da Boa Vista, me pareciam sepultar nos seus alicerces de tufo as casas dos meus e dos vizinhos, a escola, as ruas do trânsito e da gandaia, o cais e o areal dos sonhos. Eu chegava a Angra e, pouco a pouco, outras torres, – maiores e tão duramente históricas, que duas delas, as da igreja do Castelo, campeavam entre torreões que haviam sido estrangeiros, assestando bocas de fogo sobre os naturais da ilha inermes, – começavam a organizar em torno de mim a intimidade, a confiança, e dali a bem pouco o apego. Alguns anos bastaram para me naturalizar ali. E confesso até, que, apesar de ter feito o meu transplante num palmo redondo de ilha, nunca uma aclimação me custou mais do que essa.
As raízes então violentadas eram as mais tenazes, as primeiras. Depois, lentamente, a planta humana vai-se acostumando a que o destino, que é jardineiro, a «disponha», – e acaba por ter o seu sistema de implante como que em estado de alarme. Umas gotas de água de rega chegam para lhe tornar algum viço.
Mas dói, custa sempre... Recordo-me mesmo de que a minha segunda transplantação, a de uma ilha para outra, foi que me deu o tema para reviver a terceira, – então já um salto grave, quase transoceânico, das ilhas para estas nossas portuguesas paragens, a que nós, os ilhéus, chamamos «o Continente», de um ponto de vista telúrico que deve ter seu sentido em etnopsicologia. E é curioso que a evocação da largada decisiva tenha surgido noutro transe crucial de filho pródigo: a minha primeira fixação no estrangeiro.
A sempre-mesma visão da terra deixada, em panorama, parecia levar, com o apartamento, a carne do saudoso aderida ! Era outra vez toda a planta arrancada que se retraía e sentia murchar pouco a pouco. Algo assim como estas modestas largadas deve ser o passo do rio de Caronte. A uma perspectiva negra, de eclipse e de fim de mundo, sucederá, mediante a transição adequada, a adesão gradual à perspectiva nova que nos vai convidando e absorvendo. Não custa estar... ser objecto de censo demográfico, de recolher e de alvorada, de almoço, de sesta e ceia. O que dói é tornarmo-nos de repente sujeitos do mundo concluso e ausente, juízes na própria causa subitamente processada ali diante de nós... naquelas casas do amor e do hábito que fogem... que se aninham ao longe e é em nós que se comprimem.
... ... ... ... ... ... ...
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excerto cap. X in "Corsário das Ilhas", Bertrand, 1956
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Disse Jules Renard : escrever é uma maneira de falar sem ser interrompido !
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2008-03-08

A solidão

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Às vezes, a solidão devasta-nos.
Outras vezes, o barulho e o movimento provocam-nos a fuga para o isolamento.
Todos já passámos por uma situação ou outra. Não tem a ver com o sentir-se, ou não, feliz.
Tem a ver com o íntimo sentir de cada um, em cada momento («momento» que pode levar anos a passar). O tal "solitário entre as gentes" do poeta.
Talvez seja a fuga dessa realidade interior que leva muitos a estar em grupo e partilhar tudo, até os mínimos pormenores.
Ou agarrados ao telefone (hoje telemóvel) ou ao Messenger da net ou equivalente. Como antigamente era estar à janela.
No entanto é necessário e útil o isolamento interior.
É graças a ele que nos equilibramos, ao observar como vai o nosso dia-a-dia interior.
São esses os momentos de reflexão e, se forem bem geridos, são a redimensão do eu em nós.
De volta ao convívio, estaremos mais saudáveis e confiantes em nós e nos outros, na nossa independência e na dependência q.b.
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Isabel Filipe
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Disse Arturo Paoli : a paz interior é fundamental para contrariar as mensagens de terror com que os grandes interesses tentam agravar a vida de todos !
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2008-03-07

Água da fonte

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Um fio de água corre na fonte e, por qualquer razão, lembra a praia.
Do borbulhar da fonte, há a transposição para o barulho das ondas.
Para as ondas fortes e ensurdecedoras e depois para o marulhar das ondas rasteiras.
O sol está agora no ocaso e, no Verão, é tão bom estar ainda na praia, sem preocupações de maior.
Nessa altura a areia vai ficando morna e os pés já se podem enterrar nela à vontade.
Voltando à fonte, ela continua com o fio de água a correr no meio da relva e do jardim.
É um som fresco - o da água.
Refresca por dentro - seja este da fonte, seja o do mar - são sons melodiosos que ressoam em nós... se deixarmos...
Outros sons nos despertam outras emoções como, por exemplo, o crepitar da lenha que lembra o calor e uma casa acolhedora...
Emoções boas são para recordar, porque elas podem promover a paz do nosso coração e a serenidade dos nossos pensamentos.
Boas emoções são bem-sentir e bem-viver.
Viver em paz.
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Cataratas do Iguaçu
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Disse Wolfgang von Goethe : quando se tem confiança em si mesmo, transmite-se confiança aos outros !
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2008-03-06

Imagens

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Um dia acordamos e vemos duas imagens.
Não duas imagens sobrepostas, mas duas imagens desdobradas e diferentes.
Como se existissem janelas em cada paisagem que nos rodeia.
De vez em quando abre-se uma janela e aparecem imagens soltas, que nada têm a ver com a paisagem maior.
Umas vezes, por essa janela, passam filmes a cores, outras a preto e branco. Umas vezes tão rápidos que nem percebemos o que são, outras em ritmo agradável; até dá para ver palavras escritas em fundos simples e lindíssimos.
É um modo de vida ou, se quisermos, de várias parcelas de vida numa só vida.
Ah, as imagens podem ser do passado, outras do presente a algumas até do futuro.
Umas são deste planeta e de coisas conhecidas; outras, de outros mundos.
E, claro, umas são lindas; outras... nem por isso.
- E estamos a falar de...
- De estar sempre no sofá a ver os canais de televisão nesse écran especial – como é?
- Plasma! Chama-se plasma...
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Tarsila do Amaral.
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Disse Clive Barnes : a televisão é a primeira cultura verdadeiramente democrática, a primeira cultura disponível para todos e inteiramente baseada no que as pessoas querem. O problema mais aterrador é o que as pessoas querem !
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2008-03-05

Mal entendidos

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Mal entendidos e enganos de palavras. Entendimentos desencontrados por palavras que, para uns, são uma coisa e, para outros, um chorrilho de significados trocados.
São problemas de linguagem. São subtilezas que podem degenerar em erros graves se não houver quem corrija com boa vontade e capacidade.
Esclarecer é, pois, necessário para se manter o estado de verdade e integridade das coisas.
Não é importante que as pessoas concordem umas com as outras.
Mas é importante que sejam francas e honestas.
A honestidade parece que se foi perdendo nos tempos; até a honestidade do indivíduo consigo próprio sofreu uma desvalorização, com a desculpa da conjugação de interesses, embora isso possa ser uma opção para o bem estar de um grupo.
A honestidade baseia-se no entendimento do que cada um é. Não obriga a nenhuma concordância.
Menos ainda a fazer o que é contrário a esta franqueza ideológica.
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Imagem retirada da net
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Disse Adlai Stevenson : o homem não vive só de palavras, ainda que às vezes as tenha de engolir !
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2008-03-04

Sintonias

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Contas, neste caso, a factura da energia. É a soma das luzes, dos computadores, televisões ou écrans, aparelhagens de som, máquinas da casa – das arcas frigoríficas às de roupa –, motores de rega e sei lá que mais.
Um lençol de números e fracções com um total para pagar que inclui uns «ajustes».
No entanto há outra factura de energia para pagar, essa sim, muito mais importante porque é mesmo nossa, da cabeça aos pés.
Não pertence à casa, nem às coisas, nem ao trabalho, nem a nada mais que não à própria pessoa.
Trata-se das energias individuais e das trocas de energia com o mundo que nos rodeia.
Desde que nos levantamos a cada dia, das vinte e quatro horas sobre vinte e quatro horas, somos energia em troca de energia.
Um modo de ser afável, «musicado» no ritmo dos movimentos, saudável nos alimentos e bebidas a ingerir, com pensamentos agradáveis e caridosos para os outros, são modos de promover trocas saudáveis de energias, em sintonias acertadas e recíprocas entre nós e o mundo.
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Leonid Afremov
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Disse Anaïs Nin : não vemos as coisas como elas são, mas sim como nós somos !
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2008-03-03

Faz parte dos anónimos

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Hoje é dia de aniversário, um dia festivo por natureza.
Dia de bolo, velas, prendinhas e de amizades.
Vai trabalhar à mesma, almoça como é costume e volta à tardinha.
Tudo igual excepto na família que está feliz porque está vivo, de saúde regular e independente para ir levando os dias assim... com paciência e muita, oh! muita benevolência.
Um exemplo difícil de seguir e que poucos, pouquíssimos notam.
Faz parte dos anónimos e humildes que vivem sem perturbar ninguém, antes tentam ajudar os outros nas suas dificuldades.
E os outros nem reparam, a maior parte das vezes, nessa mão amiga.
Sem louros, sem lembranças e até. a mor das vezes, sem agradecimentos.
Esse problema, porém, é só dos outros porque ele não é ofendido nem ofensável.
É assim, é um homem (ou melhor, Homem) de bem!
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Speed Graphic
Máquina produzida entre 1940 e 1947
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Disse Cícero : A vida feliz consiste na tranquilidade da mente !
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2008-03-02

Vitorino Nemésio # O Bicho Harmonioso (dois poemas)

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Em Março, os textos de Domingo serão dedicados a Vitorino Nemésio.
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Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro da Silva nasceu a 19 de Dezembro de 1901 na Praia da Vitória, ilha Terceira, e faleceu em Lisboa a 20 de Fevereiro de 1978.
Aluno pouco brilhante (ou bastante incompreendido pelos professores), reprovou um ano e concluiu o curso geral dos liceus com a nota de dez valores.
No entanto, o seu primeiro livro de poesia, Canto Matinal, foi publicado em 1916 e o primeiro livro de ficção, Paço do Milhafre, em 1924.
Licencia-se em Filologia Românica em 1931 na Faculdade de Letras de Lisboa, onde fica a leccionar e onde fará o doutoramento em Letras em 1934.David Mourão-Ferreira diz o seguinte de Nemésio: «Não é fácil esboçar o perfil de Mestre Vitorino Nemésio, já pela incessante mobilidade do modelo, já pela extrema variedade e pela invulgar sobreposição dos traços que o caracterizam. … … Mas a dificuldade do retrato não deriva apenas da diversidade, da complexidade e da acumulação de imagens do retratado: deriva também da força íntima de cada uma delas, da exuberância do talento (porque não dizer genialidade?) com que se têm afirmado, em Vitorino Nemésio, o poeta e o professor, o ficcionista e o crítico, o cronista, o biógrafo, o historiador e o filósofo da cultura. … … não vejo, aliás, mais ninguém, que depois nos falasse igualmente do pensamento de Husserl e da teoria dos quanta, da filosofia de Heidegger e do código genético… De súbito, porém, podíamos vê-lo ainda pegar da sua viola para nos tocar um trecho de Albéniz ou uma canção tradicional da Ilha Terceira… Mas enganar-se-á redondamente quem suspeitar – diante de tal profusão de aptidões, de talentos, de apetências e de recursos naturais – que porventura exista, em Vitorino Nemésio, o quer que seja de um diletante. O seu caso, pelo contrário, é o de uma personalidade de tipo fáustico, para quem o mundo do conhecimento não tem limites.»
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................A CONCHA
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A minha casa é concha. Como os bichos,
Segreguei-a de mim com paciência :
Fachada de marés, a sonho e lixos ;
O horta e os muros – só areia e ausência.
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Minha casa sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se as vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.
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E telhados de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera – oh bronze falso!
Lareira aberta ao vento, as salas frias.
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A minha casa... Mas é outra a história :
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.
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..O FALECIDO POETA
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Os mortos tinham perdido
Todos os costumes de vivos,
Perfeitamente defuntos.
Este – não era esquecido ;
Aquele – falava de assuntos
Muito diferentes, do céu...
E um, que era distraído,
Só tinha ao lado, apodrecido,
Um bocado do chapéu ;
…Mas é porque não estava completamente falecido.
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Era, aliás, o único
Que, pela posição,
Guardava a ideia de recta ;
E, como tinha estudado história,
Havia um buraco púnico
No fundo da sua memória.
Os outros mortos chamavam-lhe – o Falecido Poeta.
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E na verdade havia
Na sua cabeça descascada
O essencial da Poesia :
Um céu de osso,
Sem uma única estrela ;
Uma lua de cal e um sol de barro grosso ;
E, por cima, uma noite de sete palmos
Debaixo de uma aurora amarela.
Os outros mortos viviam sem dia nem noite – calmos
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Ora, uma vez que o Semi-Vivo teimou
Em esquecer-se de vez
Ou reassumir de tudo
A claridade – chorou ;
E foi assim que talvez,
Querendo falar, ficou mudo
E, procurando, não achou
Uma lágrima... outrora...
Ao toco do seu dedo
Chegara um filtro de chuva,
Seria no mundo uma hora.
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Chovia muito. Os outros mortos tinham medo
De resfriar – e chovia.
Por dentro da janela, na vida, estava a viúva
Do Defunto Poeta.
E chovia.
Cada defunto abriu o seu guarda-sol, como uma seta…
E lá ficaram todos, debaixo de chuva e de poesia.
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in “O Bicho Harmonioso”, Coimbra, 1938
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Disse Paul Valéry : Nem sempre sou da minha opinião !
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2008-03-01

Cansaço

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Cafés, chocolates em forma de tabletes ou bombons, água pelo dia fora.
Enfim, um sem número de pormenores para manter os olhos abertos apesar do sono. E alguma genica em vez do cansaço que parece fazer-nos escorregar até ao chão... assim na vertical de nós.
São os dias com mais horas do que podemos aguentar e as noites de sono tão pequenas que parecem acabar logo, logo, a seguir ao adormecer.
Também fome de comida, mesmo!
Daquela comida que cheira à distância, dos cafés, pastelarias e restaurantes.
Incluindo aquelas sandes gulosas de aspecto e molhos que às vezes passam por nós, entre os sacos (saquitos) de papel pardo e o bocado que está de fora, pronto a comer.
O cansaço traz miragens e não são só no deserto e de oásis.
São como aquelas visões dentro da nossa cabeça, tão nítidas que parecem reais e vivas.
Tanta ilusão! Será este cansaço também ilusão?
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Jacek Yerka
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Disse Friedrich Nietzsche : Devemos estabelecer este princípio: só vivemos graças a ilusões - a nossa consciência apenas aflora a superfície !
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