Vitorino Nemésio # Romance de Xangô
.
Lá em Matatu Pequeno
Uma cortina de cassa
Velava o Pègi de Anísia,
Iahorixá da Bahia.
Já aquedes e alabês
Enchem o casto terreiro
De bustos de bronze adustos
E corpetinhos de crivo.
Um cheiro a canela e a cravo
Paira, dos verdes de Oxóssi
Ao branco e azul de Nãnã:
Que teremos candomblé
Até romper a manhã.
Rum, rúmpi, lé já perfilam
Suas cordas de atabaques.
Um mugido de zebu
Vibra nas peles de carneiro,
Agasalha as velhas negras
Em saiote de sinhá,
E os dentes dos negros púberes
Em etéreas melancias
Destilam saliva e sumo.
A noite de oiro tornou
Meu rosto negro de fumo.
Ouvi um timbre de cobre:
É o xerê de Xangô.
Dàzinha, que o peito encobre,
Branca e vermelha, chegou.
É negra. Seu rosto duro
Parece o duplo machado
Que lhe talha os alvos ossos
Sob o véu da pele de sombra.
Terrível, firme, rodada,
A Filha do Raio assombra.
Dàzinha, quando iàô,
A sua lã de ovelhinha
Nas mãos de Anísia deixou.
Seu cabelo vira arame
De que tira os braceletes
Para dançar a Xangô.
Deixem-na! Deixem-na! Sobe
Nas fitas-de-cor do tecto
O relento das gargantas,
O casto aulido nagô.
Dàzinha, com os pés em leque
E as aspas das mãos nas ancas,
Como grávida de um deus,
Tenebrosa, começou.
Primeiro, peneira cravos
Na roda da sua saia;
Depois queima um seio vivo
Na chama do movimento;
Faz do outro seio cego
A carapaça do cágado
Grato a Xangô. E um galinho,
Com crista de fogo, cheira
A fogo no seu focinho.
Dança, dura e verdadeira,
Dàzinha no candomblé.
Xangô gosta de amalá:
E da terra do terreiro
(Batido, ressoa o chão)
Dàzinha, a ponta de pé,
Dançando, amassa pirão.
Sua aromas em seu busto
Perfumando o caruru:
É um anjo de azeviche
Que salta de canguru.
E eu, atônito, estrangeiro,
Sentindo um agbé nas veias,
Vejo tudo rosa e beje,
Encolhe-me ao seu girar:
Está jogando a Cabra-Cega;
Dança – e parece voar!
Não que tenha nada de ave,
Salvo de galo nagô,
Nem peninha meiguiceira
Seu corpo pesado alou.
Mas, porque dança esvoaçando
Como ave de trilho pobre,
Vejo-a avestruz de Nigéria
Nos braceletes de cobre.
Ao seu calcanhar de pau
O chão do terreiro é oco;
O deus bebe-lhe o suor
Mais doce que água de coco.
Pára, tonta, possuída,
Muge sagrada, escorrendo
Fúrias de Xangô dançadas,
Leões do Sudão morrendo.
Vejo tudo negro e beje;
Nas toalhas encharcadas,
Como quem embala fruta,
Chica seus seios protege.
Então, velando-lhe o rosto,
Como o do deus, falquejado,
O sacrifício e o desgosto
Arfam no peito suado.
Outra vez dança Dàzinha
O rito do fogo breve,
A lança da guerra preta
E o pilão da escravaria:
Pavlova, com véus e dedos,
Mais fundo não dançaria.
Até que, tendo prostrado
Su'alma de anéis e fugas
Em vénia à Iá do Alaqueto,
Seu corpo de ébano fica
Definitivo e quieto.
Outra vez Xangô a abrasa
Na viração da Bahia;
O diadema do caçoilo
Em sua fronte luzia.
As negras, fechando os olhos,
Comem pavios inteiros
Acesos no seu dançar;
E então, passando o caçoilo,
Alta, nutrida de lume,
Dàzinha vem me abraçar.
Não é coisa do outro mundo
Nem convite ao mestiçar:
É o «ritual muito limpo»
(Diz Pessoa) do deitar.
Passa-me os braços nas costas,
Tremenda, digna e direita;
Duas vezes seu pescoço
Toca o meu, pra mo sagrar,
Como quando à noite deita
O seu minino a ninar:
E lá vai, mais pura ainda,
Arder, arder e dançar.
.
Oiçam agora! Não levem
Mais brancos ao candomblé!
Fechem a barra à Bahia,
Ponham Lévy-Bruhl no Index,
Queimem o Museu do Homem,
Esqueçam tudo: Pavlova
De pernas coregrafadas,
Hermes, a Antropologia,
A Psicanálise, Froboenius,
Gobineau, a Etnografia,
As religiões comparadas ...
Mas, pelo amor de Deus, não levem
Mais brancos ao candomblé!
.
Dàzinha, Xangô virada,
Sendo negra, o Fogo é!
.
.
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home