Escritos de Eva

Aqui Eva escreve o que sonha e - talvez - não só. Não tem interesses de qualquer tipo nem alinhamento com sociologias, política, religião ou crenças conformes às instituições que conhecemos. Estes escritos podem servir de receita para momentos de leveza, felicidade ou inspiração para melhorar cada dia com bons pensamentos. Alguns poemas ou textos... Algumas imagens ou fotos... Mulheres e homens, crianças e idosos podem ler Eva e comentar dando a sua opinião.

2008-03-16

Vitorino Nemésio # Romance de Xangô

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Lá em Matatu Pequeno
Uma cortina de cassa
Velava o Pègi de Anísia,
Iahorixá da Bahia.
Já aquedes e alabês
Enchem o casto terreiro
De bustos de bronze adustos
E corpetinhos de crivo.
Um cheiro a canela e a cravo
Paira, dos verdes de Oxóssi
Ao branco e azul de Nãnã:
Que teremos candomblé
Até romper a manhã.
Rum, rúmpi, lé já perfilam
Suas cordas de atabaques.
Um mugido de zebu
Vibra nas peles de carneiro,
Agasalha as velhas negras
Em saiote de sinhá,
E os dentes dos negros púberes
Em etéreas melancias
Destilam saliva e sumo.
A noite de oiro tornou
Meu rosto negro de fumo.
Ouvi um timbre de cobre:
É o xerê de Xangô.
Dàzinha, que o peito encobre,
Branca e vermelha, chegou.
É negra. Seu rosto duro
Parece o duplo machado
Que lhe talha os alvos ossos
Sob o véu da pele de sombra.
Terrível, firme, rodada,
A Filha do Raio assombra.
Dàzinha, quando iàô,
A sua lã de ovelhinha
Nas mãos de Anísia deixou.
Seu cabelo vira arame
De que tira os braceletes
Para dançar a Xangô.
Deixem-na! Deixem-na! Sobe
Nas fitas-de-cor do tecto
O relento das gargantas,
O casto aulido nagô.
Dàzinha, com os pés em leque
E as aspas das mãos nas ancas,
Como grávida de um deus,
Tenebrosa, começou.
Primeiro, peneira cravos
Na roda da sua saia;
Depois queima um seio vivo
Na chama do movimento;
Faz do outro seio cego
A carapaça do cágado
Grato a Xangô. E um galinho,
Com crista de fogo, cheira
A fogo no seu focinho.
Dança, dura e verdadeira,
Dàzinha no candomblé.
Xangô gosta de amalá:
E da terra do terreiro
(Batido, ressoa o chão)
Dàzinha, a ponta de pé,
Dançando, amassa pirão.
Sua aromas em seu busto
Perfumando o caruru:
É um anjo de azeviche
Que salta de canguru.
E eu, atônito, estrangeiro,
Sentindo um agbé nas veias,
Vejo tudo rosa e beje,
Encolhe-me ao seu girar:
Está jogando a Cabra-Cega;
Dança – e parece voar!
Não que tenha nada de ave,
Salvo de galo nagô,
Nem peninha meiguiceira
Seu corpo pesado alou.
Mas, porque dança esvoaçando
Como ave de trilho pobre,
Vejo-a avestruz de Nigéria
Nos braceletes de cobre.
Ao seu calcanhar de pau
O chão do terreiro é oco;
O deus bebe-lhe o suor
Mais doce que água de coco.
Pára, tonta, possuída,
Muge sagrada, escorrendo
Fúrias de Xangô dançadas,
Leões do Sudão morrendo.
Vejo tudo negro e beje;
Nas toalhas encharcadas,
Como quem embala fruta,
Chica seus seios protege.
Então, velando-lhe o rosto,
Como o do deus, falquejado,
O sacrifício e o desgosto
Arfam no peito suado.
Outra vez dança Dàzinha
O rito do fogo breve,
A lança da guerra preta
E o pilão da escravaria:
Pavlova, com véus e dedos,
Mais fundo não dançaria.
Até que, tendo prostrado
Su'alma de anéis e fugas
Em vénia à Iá do Alaqueto,
Seu corpo de ébano fica
Definitivo e quieto.
Outra vez Xangô a abrasa
Na viração da Bahia;
O diadema do caçoilo
Em sua fronte luzia.
As negras, fechando os olhos,
Comem pavios inteiros
Acesos no seu dançar;
E então, passando o caçoilo,
Alta, nutrida de lume,
Dàzinha vem me abraçar.
Não é coisa do outro mundo
Nem convite ao mestiçar:
É o «ritual muito limpo»
(Diz Pessoa) do deitar.
Passa-me os braços nas costas,
Tremenda, digna e direita;
Duas vezes seu pescoço
Toca o meu, pra mo sagrar,
Como quando à noite deita
O seu minino a ninar:
E lá vai, mais pura ainda,
Arder, arder e dançar.
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Oiçam agora! Não levem
Mais brancos ao candomblé!
Fechem a barra à Bahia,
Ponham Lévy-Bruhl no Index,
Queimem o Museu do Homem,
Esqueçam tudo: Pavlova
De pernas coregrafadas,
Hermes, a Antropologia,
A Psicanálise, Froboenius,
Gobineau, a Etnografia,
As religiões comparadas ...
Mas, pelo amor de Deus, não levem
Mais brancos ao candomblé!
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Dàzinha, Xangô virada,
Sendo negra, o Fogo é!
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in "Violão de Morro... e 9 Romances da Bahia"
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Disse Malcom Forbes : o objectivo da educação é transformar uma mente vazia numa mente aberta !
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