Escritos de Eva

Aqui Eva escreve o que sonha e - talvez - não só. Não tem interesses de qualquer tipo nem alinhamento com sociologias, política, religião ou crenças conformes às instituições que conhecemos. Estes escritos podem servir de receita para momentos de leveza, felicidade ou inspiração para melhorar cada dia com bons pensamentos. Alguns poemas ou textos... Algumas imagens ou fotos... Mulheres e homens, crianças e idosos podem ler Eva e comentar dando a sua opinião.

2008-03-02

Vitorino Nemésio # O Bicho Harmonioso (dois poemas)

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Em Março, os textos de Domingo serão dedicados a Vitorino Nemésio.
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Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro da Silva nasceu a 19 de Dezembro de 1901 na Praia da Vitória, ilha Terceira, e faleceu em Lisboa a 20 de Fevereiro de 1978.
Aluno pouco brilhante (ou bastante incompreendido pelos professores), reprovou um ano e concluiu o curso geral dos liceus com a nota de dez valores.
No entanto, o seu primeiro livro de poesia, Canto Matinal, foi publicado em 1916 e o primeiro livro de ficção, Paço do Milhafre, em 1924.
Licencia-se em Filologia Românica em 1931 na Faculdade de Letras de Lisboa, onde fica a leccionar e onde fará o doutoramento em Letras em 1934.David Mourão-Ferreira diz o seguinte de Nemésio: «Não é fácil esboçar o perfil de Mestre Vitorino Nemésio, já pela incessante mobilidade do modelo, já pela extrema variedade e pela invulgar sobreposição dos traços que o caracterizam. … … Mas a dificuldade do retrato não deriva apenas da diversidade, da complexidade e da acumulação de imagens do retratado: deriva também da força íntima de cada uma delas, da exuberância do talento (porque não dizer genialidade?) com que se têm afirmado, em Vitorino Nemésio, o poeta e o professor, o ficcionista e o crítico, o cronista, o biógrafo, o historiador e o filósofo da cultura. … … não vejo, aliás, mais ninguém, que depois nos falasse igualmente do pensamento de Husserl e da teoria dos quanta, da filosofia de Heidegger e do código genético… De súbito, porém, podíamos vê-lo ainda pegar da sua viola para nos tocar um trecho de Albéniz ou uma canção tradicional da Ilha Terceira… Mas enganar-se-á redondamente quem suspeitar – diante de tal profusão de aptidões, de talentos, de apetências e de recursos naturais – que porventura exista, em Vitorino Nemésio, o quer que seja de um diletante. O seu caso, pelo contrário, é o de uma personalidade de tipo fáustico, para quem o mundo do conhecimento não tem limites.»
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................A CONCHA
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A minha casa é concha. Como os bichos,
Segreguei-a de mim com paciência :
Fachada de marés, a sonho e lixos ;
O horta e os muros – só areia e ausência.
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Minha casa sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se as vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.
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E telhados de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera – oh bronze falso!
Lareira aberta ao vento, as salas frias.
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A minha casa... Mas é outra a história :
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.
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..O FALECIDO POETA
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Os mortos tinham perdido
Todos os costumes de vivos,
Perfeitamente defuntos.
Este – não era esquecido ;
Aquele – falava de assuntos
Muito diferentes, do céu...
E um, que era distraído,
Só tinha ao lado, apodrecido,
Um bocado do chapéu ;
…Mas é porque não estava completamente falecido.
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Era, aliás, o único
Que, pela posição,
Guardava a ideia de recta ;
E, como tinha estudado história,
Havia um buraco púnico
No fundo da sua memória.
Os outros mortos chamavam-lhe – o Falecido Poeta.
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E na verdade havia
Na sua cabeça descascada
O essencial da Poesia :
Um céu de osso,
Sem uma única estrela ;
Uma lua de cal e um sol de barro grosso ;
E, por cima, uma noite de sete palmos
Debaixo de uma aurora amarela.
Os outros mortos viviam sem dia nem noite – calmos
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Ora, uma vez que o Semi-Vivo teimou
Em esquecer-se de vez
Ou reassumir de tudo
A claridade – chorou ;
E foi assim que talvez,
Querendo falar, ficou mudo
E, procurando, não achou
Uma lágrima... outrora...
Ao toco do seu dedo
Chegara um filtro de chuva,
Seria no mundo uma hora.
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Chovia muito. Os outros mortos tinham medo
De resfriar – e chovia.
Por dentro da janela, na vida, estava a viúva
Do Defunto Poeta.
E chovia.
Cada defunto abriu o seu guarda-sol, como uma seta…
E lá ficaram todos, debaixo de chuva e de poesia.
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in “O Bicho Harmonioso”, Coimbra, 1938
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Disse Paul Valéry : Nem sempre sou da minha opinião !
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