Vitorino Nemésio # O Bicho Harmonioso (dois poemas)
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Em Março, os textos de Domingo serão dedicados a Vitorino Nemésio.
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Vitorino Nemésio Mendes Pinheiro da Silva nasceu a 19 de Dezembro de 1901 na Praia da Vitória, ilha Terceira, e faleceu em Lisboa a 20 de Fevereiro de 1978.
Aluno pouco brilhante (ou bastante incompreendido pelos professores), reprovou um ano e concluiu o curso geral dos liceus com a nota de dez valores.
No entanto, o seu primeiro livro de poesia, Canto Matinal, foi publicado em 1916 e o primeiro livro de ficção, Paço do Milhafre, em 1924.
Licencia-se em Filologia Românica em 1931 na Faculdade de Letras de Lisboa, onde fica a leccionar e onde fará o doutoramento em Letras em 1934.David Mourão-Ferreira diz o seguinte de Nemésio: «Não é fácil esboçar o perfil de Mestre Vitorino Nemésio, já pela incessante mobilidade do modelo, já pela extrema variedade e pela invulgar sobreposição dos traços que o caracterizam. … … Mas a dificuldade do retrato não deriva apenas da diversidade, da complexidade e da acumulação de imagens do retratado: deriva também da força íntima de cada uma delas, da exuberância do talento (porque não dizer genialidade?) com que se têm afirmado, em Vitorino Nemésio, o poeta e o professor, o ficcionista e o crítico, o cronista, o biógrafo, o historiador e o filósofo da cultura. … … não vejo, aliás, mais ninguém, que depois nos falasse igualmente do pensamento de Husserl e da teoria dos quanta, da filosofia de Heidegger e do código genético… De súbito, porém, podíamos vê-lo ainda pegar da sua viola para nos tocar um trecho de Albéniz ou uma canção tradicional da Ilha Terceira… Mas enganar-se-á redondamente quem suspeitar – diante de tal profusão de aptidões, de talentos, de apetências e de recursos naturais – que porventura exista, em Vitorino Nemésio, o quer que seja de um diletante. O seu caso, pelo contrário, é o de uma personalidade de tipo fáustico, para quem o mundo do conhecimento não tem limites.»
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................A CONCHA
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A minha casa é concha. Como os bichos,
Segreguei-a de mim com paciência :
Fachada de marés, a sonho e lixos ;
O horta e os muros – só areia e ausência.
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Minha casa sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se as vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.
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E telhados de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera – oh bronze falso!
Lareira aberta ao vento, as salas frias.
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A minha casa... Mas é outra a história :
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.
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..O FALECIDO POETA
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Os mortos tinham perdido
Todos os costumes de vivos,
Perfeitamente defuntos.
Este – não era esquecido ;
Aquele – falava de assuntos
Muito diferentes, do céu...
E um, que era distraído,
Só tinha ao lado, apodrecido,
Um bocado do chapéu ;
…Mas é porque não estava completamente falecido.
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Era, aliás, o único
Que, pela posição,
Guardava a ideia de recta ;
E, como tinha estudado história,
Havia um buraco púnico
No fundo da sua memória.
Os outros mortos chamavam-lhe – o Falecido Poeta.
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E na verdade havia
Na sua cabeça descascada
O essencial da Poesia :
Um céu de osso,
Sem uma única estrela ;
Uma lua de cal e um sol de barro grosso ;
E, por cima, uma noite de sete palmos
Debaixo de uma aurora amarela.
Os outros mortos viviam sem dia nem noite – calmos
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Ora, uma vez que o Semi-Vivo teimou
Em esquecer-se de vez
Ou reassumir de tudo
A claridade – chorou ;
E foi assim que talvez,
Querendo falar, ficou mudo
E, procurando, não achou
Uma lágrima... outrora...
Ao toco do seu dedo
Chegara um filtro de chuva,
Seria no mundo uma hora.
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Chovia muito. Os outros mortos tinham medo
De resfriar – e chovia.
Por dentro da janela, na vida, estava a viúva
Do Defunto Poeta.
E chovia.
Cada defunto abriu o seu guarda-sol, como uma seta…
E lá ficaram todos, debaixo de chuva e de poesia.
in “O Bicho Harmonioso”, Coimbra, 1938
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