Escritos de Eva

Aqui Eva escreve o que sonha e - talvez - não só. Não tem interesses de qualquer tipo nem alinhamento com sociologias, política, religião ou crenças conformes às instituições que conhecemos. Estes escritos podem servir de receita para momentos de leveza, felicidade ou inspiração para melhorar cada dia com bons pensamentos. Alguns poemas ou textos... Algumas imagens ou fotos... Mulheres e homens, crianças e idosos podem ler Eva e comentar dando a sua opinião.

2007-11-30

Preocupações

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Passeios de excursão escolar. Preocupação de mães, pais e avós.
Tantos acidentes, que aparecem na televisão ou nas notícias, não dão para descansar.
Por mais positivo que se queira ser, as dúvidas e incertezas são mais sentidas.
Às vezes dá impressão que a inconsciência, ou a loucura, saíu à rua em forma de condutor desnorteado.
É um dos problemas actuais, o individualismo exacerbado num mundo que gira à volta das pressas e da concorrência.
É necessário vigiar mais as emoções indisciplinadas e que só prejudicam, mais cedo ou mais tarde, quem as deixa fugir do controlo da vontade.
Vontade de bem fazer, vontade de se aperfeiçoar no trabalho ou na tarefa que desempenha.
Porque hoje são outros mas amanhã poderemos ser nós.
Porque à velocidade a que tudo acontece e decorre, não é possível evitar os problemas, apenas remediá-los.
No outro dia vi um rapazinho novo, cego e sem a noção de quem era sequer, acompanhado pela mãe para tratamentos de fisioterapia.
Um acidente do tempo e do espaço. Um instante que lhe marcou o futuro desta vida.
Seres humanos, tão inteligentes e tão insensatos, tomam a vida saudável como uma certeza.
Pensam que o amanhã é como o hoje, com gente querida à sua volta.
A solidão da velhice é uma probabilidade tão possível como o hoje estarmos vivos.
Pensar na vida que cada um tem e tentar melhorá-la é a atitude sã que cada um deve enaltecer.
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Andy Warhol

2007-11-29

Os gatitos

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Buganvílias agitam as suas flores de papel ao sol e ao vento.
Os cães olham na direcção dos ramos, para os gatitos que passam a bom correr pelo parapeito, sempre de olho nos cães.
Estes saltam a boa altura mas não os conseguem alcançar.
É um frenesim que ainda dura bastante tempo.
As pessoas que passam, e que percebem, olham divertidas.
E os gatitos levam a dianteira, brincalhões e divertidos.
São dias de brincadeiras e movimentos rápidos em competição.
Conseguem agitar tudo e todos à sua volta.
Perante aquele rebuliço até os carros travam para não atropelar «aquilo» que passou a correr (ou a voar?), logo a seguir a uma curva bem apertada, naquele bairro tão sossegado.
Os mais velhos trazem os restos dos seus pratos para colocar no passeio e ficam a olhar a ninhada que come tudo num instante.
E lá vão eles pelos ramos, porque lá em cima estão os pássaros.
O pior é conseguir lá chegar e depois descer sem cair.
O melhor é ir pelos arbustos... que aqueles ramos picam que se fartam.
Na Primavera já vão estar bem crescidos se souberem defender-se até lá.
De repente aparece do nada uma névoa lilás, muito fina, como um véu, e envolve todos os gatitos da ninhada que estavam a descansar no muro.
E a seguir eles flutuam no ar ou nessa neblina.
A neblina é agora branca e depois transparente.
Quando ela desanuvia são os gatos que estão lilases, contornados num véu lilás.
E estão felizes como sempre.
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Imagem retirada da net

2007-11-28

Inverno

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Vento forte batendo nas faces. As mãos e as orelhas estão muito frias.
As pernas estão trôpegas e os passos são trémulos, apesar do apoio da bengala.
Mas ele não desiste. Nunca desistiu, sempre se atirou com toda a coragem ao que achava que deveria fazer ou porque lutar.
Cheio de ideias novas e de uma vontade indestrutível fez sempre frente a doenças, azares, horrores e a todas as incongruências de que foi vítima ao longo de tantos anos.
Ele era sempre o apontado quando algo corria mal e sempre o chamado para resolver os problemas.
Mas não era chamado para o premiarem ou sequer agradecerem.
Tinha aquele ar de ser diferente, um ser incómodo para a sociedade.
E isso fazia sentir medo. Medo de o colocar em altos postos, medo de lhe dar a importância que deveras merecia. Porque trabalhava bem e num estilo perfeccionista. O que ainda piorava as relações com os outros, os da grande mediania.
Um colosso de homem, agora vacilante quanto ao Inverno que se avizinha.
Não o Inverno da natureza, mas o Inverno da sua vida.
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© Ryszard Lebmor

2007-11-27

Mudanças

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Casas novas e pinturas.
As casas velhas também requerem pinturas.
Mas o cheiro da tinta no ar é diferente. Numas acentua o cheiro a novo.

Nas outras tira o cheiro a mofo e faz lembrar o que eram, anos antes.
Nós também (mesmo sem pinturas) podemos lembrar como éramos anos antes.
Ela, por exemplo, era muito triste.

Tinha amargura e dor em litros, hectolitros de lágrimas.
As lágrimas de mulher diz-se que Deus as conta. Possam então ser úteis…
Hoje, à distância de meio século, à distância de uma aurora boreal, de um céu rosa e terra branca de neve, uma alegria suave preenche o seu olhar e suaviza-lhe também o coração.
Hoje há flores a esvoaçar alegremente como borboletas pelo espaço à sua roda.
Hoje há luz branca no Sol que ilumina o céu, azul claro. Só o nascer do Sol é rosa e o ocaso laranja.
Hoje a mudança é compreendida.
Hoje os dias são como eram, mas com cores diferentes.

São dias de vida – novamente!
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2007-11-26

Doces

Dia escuro e chuvoso, uma música de jazz que enche a casa.
Casa que sofre arrumações e desarrumações para finalmente se ajeitarem móveis e futilidades (necessaríssimas!).
Tudo arrumado e o espaço que havia… já não há.
Todos os cantos e nichos estão preenchidos.
E se o chão está livre, cobre-se de seguida com um tapete.
Que é da casa espaçosa dos nosso sonhos? Não faço a mínima ideia porque tudo o que temos é preciso.
Às vezes acontece comprar novamente o que se tem porque não sabemos onde está, mas isso…
- Queres um bombom?
- Pois sim. Quem os inventou merecia um prémio, desses bem bons.
- E quem sabe se não inventaria algo melhor a seguir?
- Difícil mas possível.
- Sempre!
- Concordemos. São um encanto da culinária.
- Posso levar mais um? Assim dá para a viagem porque sair daqui para esse temporal que está lá fora, fica muito melhor com ajuda de bombons.
- Lá diz o povo “o que é doce nunca amargou”.
- É mais ou menos isso, é. O sentido está correcto.
- Para a próxima tenho bolo de chocolate.
- Isso, e com amêndoas raladas, por favor…
- Não estamos de dieta?
- Mas lembraste coisas tão boas…
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2007-11-25

Anónimo Séc XVII # Arte de Furtar

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Dos que furtam com unhas mimosas
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Assim como há unhas fartas, também as há mimosas, que são suas filhas e por isso piores, por mal disciplinadas, porque para regalarem a seus donos furtam mais do necessário. Furtar o necessário, quando a necessidade é extrema, dizem os teólogos que não é pecado, porque, então, tudo é comum e não há nem meu nem teu, quando se trata da conservação das vidas, que perecem por falta do que hão mister, para se sustentarem; mas furtar o supérfluo, para amimar o corpo e regalar a alma, é caso digno de repreensão e ainda mal que sucede muitas vezes. Como agora: ponhamos exemplos, porque exemplos declaram muito.
É certo que a qualquer ministro de el-rei basta o ordenado que tem, com as gages lícitas do ofício, para passar honestamente, conforme a seu estado. Pois se lhe basta um vestido de baeta, para que o faz de veludo? Se lhe sobeja um gibão de tafetá, para que o faz de tela, quando el-rei o traz de holandilha? Para que come galinhas e perdizes e tem viveiro de rolas, se pode passar com vaca e carneiro? Para que despende em doces e conservas o que bastava para casar muitas orfãs, bastando passas e queijo, para assentar o estômago, sem lhe causar as azias que padece pelos muitos guisados que não pode digerir? Para que são tantas mostras do reino e de Canárias, bastando uma de Caparica ou de mais perto? Por verdade afirmo que vi, em casa de um nesta corte, mais de quinze frasqueiras e não era flamengo; e outro que mandava borrifar o ar com água de flor para aliviar a cabeça, que melhor se aliviaria não lhe dando tanta carga de licores.
Muitos mimos são estes e que não podem estar sem empolgar as unhas na fazenda que lhes corre pela mão, e por isso lhes chamo unhas mimosas. Quien cabras nò tiene y cabritos veinde, donde le vienen? Meu irmão, ministro, oficial ou quem quer que sols, se vossa casa, ontem, era de esgrimidor, como a vemos hoje à guisa de príncipe? E até vossa mulher brilha diamantes, rubis e pérolas, sobre estrados broslados? Que cadeiras são estas que vos vemos de brocado, contadores da China, catres de tartaruga, lâminas de Roma, quadros de Turpino, brincos de Veneza, etc.? Eu não sou bruxo nem adivinho; mas atrevo-me, sem lançar peneira, afirmar que vossas unhas vos granjearam todos esses regalos, para vosso corpo, sem vos lembrarem as tiçoadas com que se hão-de recambiar no outro mundo. Porque é certo que vós os não lavrastes, nem os roçastes, nem vos nasceram em casa como pepinos na horta.
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.in "Arte de Furtar"

.de anónimo Séc. XVII

.(actualmente atribuído a Padre Manuel da Costa)

2007-11-24

Alegria e tristeza

Malhas, lãs, tecidos felpudos – ou seja, tudo o que aqueça – é para o que todos olham e usam porque o frio chegou.
As cozinhas começam a ter cheiros convidativos à boa mesa.
À mesa, refeições lentas ou prolongadas, apetece ficar por aquele quentinho acolhedor.
A maior parte das pessoas ainda não liga os aquecimentos – na poupança – mas já apetece.
As casas, quando chegamos ao fim do dia de trabalho, estão geladas mas ainda vão aquecendo com os nossos afazeres e andanças rápidas, para preparar o resto do dia e já o próximo.
Os mais novos já querem a árvore de Natal e o resto dos enfeites.
As casas vão começando a mostrar o desejado ambiente de festa.
As madeiras, os metais, as pedras e louças todas ganham novos brilhos e dão cheiros dos produtos utilizados e esquecidos durante um ano.
Que seja possível conseguir levar palavras de carinho a quem deixou o coração ficar indiferente, pelos dias sofridos.
Ou a quem deixou arrefecer o coração à alegria – sua e dos outros.
Sempre que puder haver festa não haja tristeza e talvez a alegria queira ficar todo o ano.
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2007-11-23

O progresso

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Bolas coloridas nos fios eléctricos para os pássaros os verem a tempo de se desviar.
Torres de energia, com forças ainda desconhecidas de todo o seu poder, alternam com casas a poucos metros de distância.
Há até um bairro, perto da minha casa, que tem vivendas com torres enormes no jardim, a palmos (nem sequer a metros) das janelas e dos muros que rodeiam as casas.
Dizem que faz parte da evolução.
Eu é que ainda não percebi a que evolução se referem – se do progresso, se de doenças ou de quê…
Vivemos à custa da energia - isso é verdade.
É quase inconcebível voltar aos tempos das velas, à escrita de pena e tinteiro, ao lume só de lenha ou carvão…
Enfim, deve ser mesmo o tal progresso forçado.
Os físicos já se repetem ao afirmar que tudo é energia à nossa volta, incluindo nós próprios.
Os crentes em Deus ou em algo divino e superior ao ser humano, sempre tiveram essa noção de energia una.
Essa crença, de singela esperança, atinge a força poderosa da fé.
Possa ser a energia dessa fé bem dirigida em favor de um progresso maravilhoso para todos – das regiões mais favorecidas às mais prejudicadas.
Talvez, então, a raça humana se possa orgulhar, um pouco mais, do seu progresso.
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Aline Pottier

2007-11-22

Limitações

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Não sei que vida pode haver aqui. O chão parece todo queimado, esturricado, melhor dizendo.
A terra está castanha escura e endurecida como uma laje.
A noite permanece durante as horas do dia porque o céu está negro.
Não percebo de quê – se de fumo, se de fuligem – porque vão caindo cinzas ou algo semelhante.
- Que horror de paisagem…
- Não, o melhor de tudo é que nesta zona que vislumbramos, está a nascer um caule de qualquer planta, que ainda mal se percebe. É que, do céu – o tal céu escuro – caiu um grão de qualquer coisa, que uma ave transportava e deixou cair. E foi esse grão que deu um rebento verde.
Também ao cair fez uma fenda diminuta na terra. E dessa fenda subiu um líquido, para mim desconhecido. O grão ficou assim meio mergulhado e meio fora do tal líquido.
- Isso não pode ser porque eu estou a ver o grão e a fenda. O caule de que está a falar está ao lado, mas não é do grão.
- Então assim já não tenho explicação porque há mais fendas espalhadas, mais finas e mais largas, e não vejo mais nenhum rebento verde.
- Bem, se quiser, o impossível aconteceu.
- Quer dizer, o inexplicável! Mas tudo tem explicação!
- Sinto muito mas nem tudo tem explicação conhecida. Há muita coisa que o ser humano, cientista ou homem comum, não percebe e, no entanto, existe.
- Limitações a serem ultrapassadas?
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© Mario Paschetta

2007-11-21

Quando a neve cai

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Quando a neve cai, naqueles flocos grandes, parece um milagre dos céus.
A chuva não dá a mesma imagem.
Por incrível que pareça, a chuva dá a ilusão de ser mais fria que a neve.
A neve acalma, talvez por ser branca e ir caindo tão leve, tão linda.
Em condições de aconchego, são dias de enorme beleza. Sem condições, pode ser causa de desgraça e morte.
A natureza tem coisas destas. Mais uma vez (e sempre) tudo é relativo.
Os extremos não favorecem a qualidade, que está na moderação ou no meio-termo.
E assim como vemos a beleza da neve, vemos, na sucessão dos tempos, a beleza das flores e o renascer da natureza.
Outra vez situações extremas, amenizadas pelo tempo que decorre entre as diferentes estações do ano.
Cabe-nos apreciar o melhor de cada uma usando a sensatez.
Equilíbrio, moderação e discernimento são precisos a cada dia, a cada um,
E talvez os homens, aprendendo sempre na observação do que os rodeia de modo natural, possam apreciar a paz e a convivência pacífica de situações extremas, que podem ser sempre moderadas por vários meios.

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Monet

2007-11-20

Não se pode voltar atrás

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Acordado ou a dormir… eis uma boa questão.
Salas conhecidas, mobílias e varandas também.
Das pessoas ali habituais, nem sinal.
A sua preocupação era dizer agora o que se esquecera de falar no dia anterior.
Não estava ninguém e resolveu então ficar mais um pouco na sala vazia.
Os móveis estavam cheios de pequenos objectos de ornamento.
Credo! Tanto trabalho deveria dar manter aquilo tudo tão limpo.

Estava tudo a brilhar.
Lembrou-se em seguida da sua própria casa, também muito cheia daquele tipo de objectos – recordações de avós, viagens ou colecções que gostavam.
E lembrou também o seu estado – limpo mas sem aquele brilho.
Aliás, ali tudo luzia e parecia artificial.
Ah, era isso – estava mal acordado.
Aquele estado em que tudo é possível – até acordar e cair em si mesmo ou planar suavemente com a leveza do algodão.
Gostaria de ser melhor do que é, a cada vez, em cada ocasião.

Não se pode voltar atrás, por isso o que se pode fazer é pensar e reflectir no que fez e tentar instruir-se para da próxima oportunidade usar esta experiência de modo construtivo, para si e para os outros.
Felizmente há algo que está sempre com ele, ou nele.
Uma sensibilidade moral – o que diz ser a sua integridade em auto-análise.
Essa moral sopesa tudo – tudo o que faz.
E, graças a ela, sabe que mesmo contra todos – deve estar bem consigo.
Isso é que importa!
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Imagem retirada da net
(sem indicação de autor)

2007-11-19

Vozes

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- Estão a chamar pelo meu nome, não ouves?
- Não. Deve ser impressão tua.
- Olha, outra vez! E são várias vozes, não ouves?
- Não, continuo sem ouvir nada!
- Pois eu continuo a ouvir chamarem-me, mas já fui à porta e não vi ninguém.
- E eu digo-te que não é nada. São vozes na tua cabeça.
- Que disparate! Agora a minha cabeça ouve o que os teus ouvidos surdos não ouvem.
- Essa é boa!
- E lá estão outra vez a chamar.
- Sabes que mais? Vou-me embora! Imagina… quero ajudar e ainda me chama surda!
- Isso não é nada comparado com o insinuares que sou maluca.
- Adeus, que hoje não dá para falar contigo.
- Olá! Surpreeeesa! Então não nos ouviram? Tal era a conversa! Ao tempo que estamos a chamar, mas só agora percebemos que estávamos à porta duma casa errada. Mas já aqui estamos.
- Hoje? Mas… ainda falta mais de um mês para o Natal!
- Sim, sim. Mas tivemos que nos precaver das greves. Lembram-se que, no ano passado, o Natal foi no aeroporto?
- Bem, assim é mais calmo, é! Adeusinho. E olha, afinal a tua cabeça estava boa e eu é que estava surda. Desculpa!
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Linguagem gestual

2007-11-18

Alberto Caeiro # O Guardador de Rebanhos (Quem me dera)

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XVIII
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Quem me dera que eu fosse o pó da estrada
E que os pés dos pobres me estivessem pisando…
Quem me dera que eu fosse os rios que correm
E que as lavadeiras estivessem à minha beira…
Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio
E tivesse só o céu por cima e a água por baixo…
Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro
E que ele me batesse e me estimasse…
Antes isso que ser o que atravessa a vida
Olhando para trás de si e tendo pena…
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.in "O Guardador de Rebanhos"
.de Alberto Caeiro
.(heterónimo de Fernando Pessoa)
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2007-11-17

Enervamentos

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Porquê esse enervamento?
O céu está azul, o sol brilha, o transporte chegou à hora certa, as tarefas a cumprir estão dentro do horário, enfim, tudo promete um dia bem aproveitado. Então porquê esse nervoso miudinho? Porquê esse tremer?
- Pressentimentos, talvez.
- Pressentimentos (se os há) não fazem tremer. Remédios em excesso, sim. Desequilíbrios do organismo, por razões várias, também.
- Pois, não sei! Mas tremo sem parar. Então quando levanto as mãos para fazer qualquer coisa, ainda se nota mais.
- E não é doença? Já confirmaste?
- Já! Não há explicação médica. Eles não sabem o que é. Ou melhor, até lhe dão nomes e receitam, mas os remédios não fazem nada.
- Será medo? Inquietação, mesmo sem razão aparente?
- Não me parece. Não sinto nada disso.
- Sabes, se a própria pessoa não sabe sentir-se, não sabe de si mesma, é como um cata-vento, vai para onde o vento sopra. E às vezes, é preciso ir contra a corrente.
- Também já li sobre isso...
- Pois... é sempre, sempre bom cada um conhecer-se, analisar-se e compreender o que acontece e encontrar a causa das reacções que vai tendo.
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O Pensador
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Rodin

2007-11-16

Livros

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De fato, casaco e calça branca de linho, ela segue rapidamente mais pela estrada que pelo passeio.
O passeio, em grande parte do percurso, é apenas uma nesga. E, por vezes, até desaparece.
A pressa é por causa do comboio que está a passar não tarda e não tem ainda o bilhete.
Com tantos carros e as duas rodas estacionadas em declive nas tais nesgas de passeio, a estrada, apesar dos carros a boa velocidade, ainda é, mesmo assim, mais apelativa para os peões.
Passos mais apressados à conta dos desvios necessários para chegar à gare.
Moedas certas na máquina dos bilhetes e segue em boa corrida para a outra plataforma.
A tempo justo de apanhar o comboio, que já vai entrando.
Portas que já se abrem facilmente, ao contrário das antigas em que era preciso comer um bife para as conseguir abrir.
E um assento livre… que bom!
Agora é tempo de tirar o livro que está a ler.
Deve dar para um ou dois capítulos.
Uma velhinha, de pele muito enrugada, olha-a atentamente.
- Sabe o que é, menina, é que eu não sei ler. Nunca pude aprender. E quando vejo assim, uma pessoa de bom aspecto como a menina, sonho. Sonho que gostaria de poder ter sido assim. Dizem que os livros ensinam tudo o que precisamos e até tudo o que queremos saber. Seja o que for...
Também acha isso, menina?
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Old Woman and Toad
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Judy Sommerville

2007-11-15

Porquê

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Solidão interior, profunda, com força para calar até o instinto de desabafar um simples suspiro.
Força que tolhe, que coloca uma capa e uma armadura que fecha todo o ser em si mesmo.
Uma força que abafa imediatamente, como um raio, o impulso de um grito aflito.
Se é possível sentir esta força avassaladora, porque não é possível sentir a força da alegria a brotar, também ela, interior e profunda?
Tão profunda no nosso coração como a outra.
Porque aceitamos uma que entorpece e não aceitamos a outra que liberta e expande a nossa felicidade?
Porque é mais fácil fazer um intrincado casulo para nós mesmos do que relaxar e encarar de frente – simplesmente – os dias e as noites das nossas vidas?
Porquê achar que as desgraças não acabam em vez de promover as alegrias, para que não esmoreçam?
Porquê deixar de olhar, com agrado, a felicidade à nossa espera e passar rápido para o lado triste?
Porquê a lástima de si próprio em vez de parar apenas o necessário para tomar fôlego e seguir?
Seguir em frente de modo correcto, de moral íntegra e sentindo paz e alegria no coração por saber distinguir esse caminho.
Seguir sempre a luz que encandeia, de tão forte e bela, e deixarmo-nos iluminar por ela.
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Hino à Alegria
(partitura)

2007-11-14

A chuva

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- “ Os céus choram as lágrimas de Deus, Ele que nos deu a vida, o seu amor e a razão…” É por isso que, de vez em quando, chove.
- Isso é uma canção, não é?
- É e também é uma explicação.
- Mas eu já não sou criança. Sei muito bem que a chuva é água que pesa nas nuvens. E quando elas não podem mais, cai! É como nós quando ‘tamos 'flitinhos e vamos fazer xixi porque já não dá mais. Temos mesmo que fazer porque não podemos rebentar, não é?
- Vejamos… é uma outra versão da chuva, sim senhor.
- Pois e quando muitas nuvens ‘tão 'flitinhas, é uma enxurrada que leva os carros e as casas. Como deu na televisão, duma terra com as pessoas sentadas nos telhados a ver a água. Olha, assim como eu quando vou à praia e não me deixas ir à água. Também fico sentado a olhar para ela, como elas estavam.
- Não há dúvida que vês as coisas segundo uma linha de raciocínio… hum… de acordo com a idade.
- Poiiich – Já percebeste que não é o céu a chover, não já?
- Não! Para mim é o céu a chover!
- Então tens que ir outra vez para a escola.
- Isso tinha uma grande vantagem: ficávamos juntos e, nos intervalos, podia ser que eu descobrisse o que é que tu comes, afinal, do que te mando!
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Rainy Day
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Gil Marosi

2007-11-13

Hoje é um bom dia

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Sonhamos sonhos em que as coisas serão melhores um dia.
Hoje vamos tentar inverter um pouco ou, dizendo melhor, completar a ideia.
Sonhos de que um dia vamos apreciar e gozar as coisas que temos e que, pelos vistos, ainda não percebemos bem o seu valor.
Coisas que não valorizamos, mas criticamos e amarguramos, porque não são fáceis de gostar.
Será verdade que queremos o que é dos outros simplesmente por inabilidade em apreciar aquilo que temos?
Será preguiça, inveja, ciúme, insatisfação, incoerência, desvalorização pessoal ? Sei lá quantos adjectivos e nomes se poderiam dar.
Será o que outros chamam novos, ou sempre renovados, objectivos, perseverança, etc.
A verdade é que fica um nó na garganta, um aperto no coração e uma tristeza por esta vidinha sempre insatisfeita…
Hoje… aí para a semana… não - hoje mesmo!
Hoje é um bom dia para analisar as qualidades do que temos e do que somos.
E é a partir dessa análise que poderemos lançar as projecções (os tais objectivos) do que falta alcançar.
Observadas assim as nossas «coisas» deveremos encontrar algo útil, a que tenha valido a pena dedicar anos e anos, às vezes todas as nossas forças e emoções.
Afinal, o que queremos ser quando formos grandes?
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Conscious Dream
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Pamela Ellis

2007-11-12

Disciplina

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Óculos de sol, música nos ouvidos, boné, t-shirt, calções, ténis e passo de corrida (ou corrida suave).
Um cãozinho pequeno, de cor escura, tenta segui-la mas de vez em quando distrai-se e depois – ele sim – tem que dar uma corrida para a apanhar.
Com a música ela vai alheada ao que a rodeia e vai passando pelas ruas, casas, cruzamentos e vai afastando-se da zona urbana, sempre seguida do seu cachorrinho.
Descreve uma meia-lua de trajecto e, passado algum tempo, é altura de fazer a meia-lua de regresso a casa.
É o seu cross diário? Não! Semanal!
É o seu exercício, a sua disciplina física.
Não é muito, é quase nada. Mas é o que consegue entre o horário das tarefas.
Além do mais, este exercício é grátis e ainda apanha ar.
Não é o ar puro da natureza, mas é mais do que tem em casa, entre quatro paredes.
Não é o ideal? Pois não, não é!
Mas é o melhor que pode e quer dar a si mesma.
É o seu tempo, o tempo para si própria.
Volta cansada? Sim, mas regressa leve, leve, oh, tão leve…
Parece que foi de férias. Renovada de energias.
Parece mesmo renascida, por dentro e por fora.
Traz um novo fôlego.
Traz consigo a expansão do seu próprio ser.
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Matisse

2007-11-11

Cecília Meireles # Cântico VI - Tu tens um medo:

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Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.
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in "Cânticos"
de Cecília Meireles
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2007-11-10

Dias de sol

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Praia ainda com muitos banhistas.
Não admira, com o sol que tem feito.
Na areia estão toalhas, espreguiçadeiras e pés.
Pés de pessoas que estão paradas a conversar umas com as outras.
Pés de crianças que só estão quietas o tempo de agarrar o lanche que a mãe ou a avó lhes dá.
A seguir é uma corrida para não perderem mais tempo sem jogar com os amigos acabados de conhecer.
Os mais velhos passeiam calmamente à beira da água, para lá e para cá, conversando sobre nada de importante.
Apenas daquelas pequenas coisas que, por vezes, ganham importância desmedida nas nossas vidas.
A água do mar, junto à praia, está serena como um lago.
Nem espuma, nem ondas.
Às vezes, no Verão, não se consegue um dia calmo assim.
Dias que nos pacificam as emoções e os sentimentos mais rebeldes.
Dias de sol interior. No interior de nós.
Talvez alguns de nós vamos conseguir mantê-lo durante o Inverno.
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Eugène Delacroix

2007-11-09

Olhares

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Pareciam colunas de fogo a nascer do chão ou a cair do céu. Ou então, uma simples transformação de coisas.
Essas colunas oscilavam devagar, tornando-se cada vez mais dançantes, ao sabor de suave brisa.
As cores eram variadas e ora eram mais translúcidas, ora mais transparentes.
Viam-se também a diminuir de altura ou a inflamarem-se mais alto.
Apesar da aparência de colunas ígneas, não o eram propriamente.
Tinha relação com alterações climatéricas. Apareciam assim, quando menos se esperava, ao olhar sobre a planície.
Podíamos ficar ali que tempos, que eram sempre interessantes.
Depois ficavam luzes ou estrelas muito pequeninas que se afastavam e levavam consigo o brilho e a luz.
- Que barulho!
- É o ruído de um motor…
- Olha, assustaram-se!
- Assustaram-se ou esfumaram-se com a poeira da estrada?
- Pois, é isso… esfumaram-se na tarde… na nossa tarde!
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© Walter Tape

2007-11-08

Felicidade simples

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Fios de electricidade e de qualquer outra energia estão carregados de… pássaros.
Satisfeitos que eles estão! Chilreiam, esvoaçam e voltam a pousar nos fios.
A cena repete-se vezes sem conta durante todo o dia, que até está soalheiro e aprazível.
Apetece ficar assim… quieta… a desfrutar a vida.
Sim, ficar assim, simplesmente, quieta, sossegada.
Sem relógios, sem telefones, sem campainhas, sem horários.
Um dia inteirinho assim.
Ah, tão bom!
E os passaritos lá continuam nos seus cantos, voos e volteios nos fios.
Não, não estou a defender a preguiça – é um pouco de relaxe.
Às vezes parece que trabalho desde sempre porque comecei cedo.
E sempre me lembro de trabalhar, às vezes a troco de um obrigado!
Outras vezes nem isso, que é obrigação ajudar os pais, tios, que sei eu…
Épocas e educações que hoje parecem irreais.
Há dias em que me parece que até a dormir estou a trabalhar, tal é o cansaço que sinto ao acordar.
E estou a dormir cada vez menos horas o que também não ajuda nada.
Por isso, sabem, isto não pode ser preguiça.
Por isso, isto é relaxe e das melhores compensações que poderia ter.
Porquê?
Ora, porque me faz sentir tão bem!
Como há muito tempo não sentia.
Momentos como estes, são para recordar.São momentos de felicidade simples.
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Trabalho de Jean Dunn

2007-11-07

Encontros

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Chapinhando em águas rasteiras, um grupo enorme de pessoas, homens e mulheres de várias idades, vão chegando a uma lagoa no meio de montanhas e arvoredo.
A lagoa está cheia de pedras de lajes lisas, como pequenas mesas onde não só se pode pisar em segurança, como até se podem sentar ou recostar.
Uma parte da lagoa dá para nadar e é muito funda, como um tanque.
Outra parte, a maior, estende-se em pequenos degraus e aqui os locais mais fundos apenas dão para sentar com água pelos ombros.
A areia, entre pedras castanhas claras, é muito fina e nela crescem , aqui e ali, arbustos muito bonitos.
Em redor, o arvoredo não é denso e forma constantemente espaços e recantos aprazíveis, ao estilo de jardins muito convidativos.
Uma espécie de helicóptero amarou nas águas para os levar de regresso ao hotel.
O problema foi que muitos não queriam ir. Tinham encontrado familiares que não viam há muitos anos e até animais que tinham perdido, que vieram ter com os donos conforme estes os chamaram pelo nome.
A hora, porém, era de regresso e por isso, ficou no ar a promessa de voltarem a encontrar-se num futuro mais ou menos próximo.
- A Deus agradecemos esta visita.
- A Deus?
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Sonho Secreto
Albert Desmangles

2007-11-06

Sonho

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- Foi um sonho, e foi tão lindo que não é fácil explicar.
- Olha, não importa. Vamos mas é depressinha antes que as lojas fechem.
- E depois, posso contar?
- Boa tarde! Queria ver fios e lãs para um trabalho da escola. Conta, então…
- Estava a voar e passava os céus como se fossem níveis ou degraus. Sempre mais brilhantes e de cores diferentes, do azul ao rosa quase transparente. Fazia lembrar as auroras boreais porque não escurecia. E podia estudar nas escolas de lá porque estavam cheias de gente.
- Sim, sim, levo estes. Pode embrulhar estes aqui. Só estes. Obrigada!
Mas isso era algum sítio conhecido? Querias mudar-te para lá? Onde foi isso?
- Ah, se eu soubesse onde era, mudava sim. Era tão lindo! Mas fiquei na dúvida se estava viva ou se já tinha morrido.
- E se tivesses morrido, gostavas de continuar a estudar nas tais escolas que viste?
- Porque não? Se não se aprende tudo aqui…
- Ou seja, acreditas que, depois da morte, podemos continuar a viver… hum… de outro modo?
- Sempre me pareceu isso - não sei porquê… para mim, é assim.
- Mas olha que, se para ti, isso parece ser uma esperança renovadora, para outros (muitos outros) a vida acaba com a morte.
- E têm esperança no futuro? Deles, digo!
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A Janela

© Elizabeth Snow

2007-11-05

Reflexos

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Quartzos e cristais em pedras facetadas, colares, pulseiras… montras e lojas cheias destas peças coloridas e brilhantes.
Não são joalharias, são lojas de pedras semi-preciosas, trabalhadas para ornamento.
Peças lindíssimas e, como sempre, a beleza dá outro lustro aos nossos dias.
Materialidades que imitam as belezas naturais – o brilho do sol, o azul das águas, o azul-escuro da profundidade ou o verde-claro da água no chão de areia.
O rosa e o alaranjado das flores podem ser vistos através de caleidoscópios com os vidros e cristais.
Há também os facetados que multiplicam a luz em milhares de reflexos diferentes.
Luas e estrelas tão brancas como nuvens.
Assim, a espreitar estas coisas feitas pelo homem, se passou uma tarde.
A rua, movimentada como antes, é agora olhada como se trouxéssemos em nós o caleidoscópio das lojas.
O céu, o ar... parecem igualmente brilhantes e cheios de reflexos, conforme as cores dos carros estacionados ou das roupas das pessoas que passam.
Será um esforço muito grande mas parece valer a pena - essa tentativa de tentar ver assim tudo o que nos rodeia.
E os momentos mais banais ou desagradáveis podemos deixá-los a preto e branco, até os conseguirmos transferir para o nosso caleidoscópio imaginário.
Será então mais um milagre da cor, desta vez na nossa própria vida.
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2007-11-04

Alejandra Pizarnik - O Despertar

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Senhor
A gaiola se tornou pássaro
e voou
e o meu coração está louco
porque uiva para a morte
e sorri atrás do vento
para os meus delírios
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Que farei com o medo
Que farei com o medo
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Já não dança a luz no meu sorriso
nem as estações queimam pombas nas minhas ideias
Minhas mãos ficaram nuas
e foram onde a morte
ensina os mortos a viver
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Senhor
O ar me castiga o ser
No ar existem monstros
que bebem do meu sangue
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É o desastre
É a hora do vazio não vazio
É o instante de pôr um ferrolho nos lábios
ouvir os condenados a gritar
contemplar cada um dos meus nomes
enforcados no nada
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Senhor
Tenho vinte anos
Também os meus olhos têm vinte anos
e contudo não dizem nada
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Senhor
Consumei a minha vida num instante
A última inocência explodiu
Agora é ou nunca jamais ou simplesmente foi
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Por que não me suicido diante do espelho
e desapareço para reaparecer no mar
onde um grande barco me esperaria
com as luzes acesas?
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Por que não arranco as minhas veias
e faço com elas uma escada
para fugir ao outro lado da noite?
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O princípio deu à luz o fim
Tudo continuará igual
Os sorrisos gastos
O interesse interessado
Os gestos que arremedam o amor
Tudo continuará igual
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Mas os meus braços insistem em abraçar o mundo
Porque ainda não lhes ensinaram
que já é demasiado tarde
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Senhor
Expulsa os féretros do meu sangue
Recordo a minha infância
quando eu era uma anciã
As flores morriam nas minhas mãos
porque a dança selvagem da alegria lhes destruía o coração
Recordo as negras manhãs de sol
quando era criança
quer dizer ontem
quer dizer faz séculos
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Senhor
A gaiola se tornou pássaro
e devorou as minhas esperanças
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Senhor
A gaiola se tornou pássaro
Que farei com o medo
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in “Las Aventuras Perdidas”
de Alejandra Pizarnik
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