Escritos de Eva

Aqui Eva escreve o que sonha e - talvez - não só. Não tem interesses de qualquer tipo nem alinhamento com sociologias, política, religião ou crenças conformes às instituições que conhecemos. Estes escritos podem servir de receita para momentos de leveza, felicidade ou inspiração para melhorar cada dia com bons pensamentos. Alguns poemas ou textos... Algumas imagens ou fotos... Mulheres e homens, crianças e idosos podem ler Eva e comentar dando a sua opinião.

2007-11-25

Anónimo Séc XVII # Arte de Furtar

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Dos que furtam com unhas mimosas
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Assim como há unhas fartas, também as há mimosas, que são suas filhas e por isso piores, por mal disciplinadas, porque para regalarem a seus donos furtam mais do necessário. Furtar o necessário, quando a necessidade é extrema, dizem os teólogos que não é pecado, porque, então, tudo é comum e não há nem meu nem teu, quando se trata da conservação das vidas, que perecem por falta do que hão mister, para se sustentarem; mas furtar o supérfluo, para amimar o corpo e regalar a alma, é caso digno de repreensão e ainda mal que sucede muitas vezes. Como agora: ponhamos exemplos, porque exemplos declaram muito.
É certo que a qualquer ministro de el-rei basta o ordenado que tem, com as gages lícitas do ofício, para passar honestamente, conforme a seu estado. Pois se lhe basta um vestido de baeta, para que o faz de veludo? Se lhe sobeja um gibão de tafetá, para que o faz de tela, quando el-rei o traz de holandilha? Para que come galinhas e perdizes e tem viveiro de rolas, se pode passar com vaca e carneiro? Para que despende em doces e conservas o que bastava para casar muitas orfãs, bastando passas e queijo, para assentar o estômago, sem lhe causar as azias que padece pelos muitos guisados que não pode digerir? Para que são tantas mostras do reino e de Canárias, bastando uma de Caparica ou de mais perto? Por verdade afirmo que vi, em casa de um nesta corte, mais de quinze frasqueiras e não era flamengo; e outro que mandava borrifar o ar com água de flor para aliviar a cabeça, que melhor se aliviaria não lhe dando tanta carga de licores.
Muitos mimos são estes e que não podem estar sem empolgar as unhas na fazenda que lhes corre pela mão, e por isso lhes chamo unhas mimosas. Quien cabras nò tiene y cabritos veinde, donde le vienen? Meu irmão, ministro, oficial ou quem quer que sols, se vossa casa, ontem, era de esgrimidor, como a vemos hoje à guisa de príncipe? E até vossa mulher brilha diamantes, rubis e pérolas, sobre estrados broslados? Que cadeiras são estas que vos vemos de brocado, contadores da China, catres de tartaruga, lâminas de Roma, quadros de Turpino, brincos de Veneza, etc.? Eu não sou bruxo nem adivinho; mas atrevo-me, sem lançar peneira, afirmar que vossas unhas vos granjearam todos esses regalos, para vosso corpo, sem vos lembrarem as tiçoadas com que se hão-de recambiar no outro mundo. Porque é certo que vós os não lavrastes, nem os roçastes, nem vos nasceram em casa como pepinos na horta.
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.in "Arte de Furtar"

.de anónimo Séc. XVII

.(actualmente atribuído a Padre Manuel da Costa)