Aquilino Ribeiro # Humildade Gloriosa
Com a enfermidade, que o balouçou entre a vida e a morte, adquiriu o hábito do solilóquio. … … Na febre, em que ardera noite e dia, deitara vozes ao vento. … … Declamando, murmurando, rindo e chorando, por todos os meios da expressão oral se lhe assoalhou a alma. Talvez fosse aquela – reflectia agora – uma forma de transpiração espiritual que, aliviando-o da febre, o livrou da morte.
Frei António contraíra pois a doce mania, e todos as oportunidades lhe eram pretexto para exercê-la. … … Falava consigo, com Deus, com as criaturas. … …
Naquela manhã de sol, ainda combalido, mas gozoso de se ver quase refeito, tão gozoso que temeu incorrer no desagrado do Senhor, ia dizendo:
- Ainda a doença é uma bondade de Deus, Filipe. No nosso ser acordam as pequeninas almas a que se não presta atenção quando se está de boa animalidade. Podia eu lá alguma vez julgar que até no voo das gaivotas está desenhado o hieróglifo da Divina Graça!? Ao enfermo, porque não tem que fazer, sobra-lhe tempo para dar volta à casa. A casa interior, bem entendido. Que coisas, mal arrumadas umas, imprevistas outras, que cocas e teias de aranha pelas paredes, se não descobrem!? O homem sadio é o que menos se conhece, pois nunca se deu ao trabalho de olhar para dentro de si. O nosso seio, irmão, é uma cisterna lôbrega e só depois de se acostumar a vista à penumbra, se arregalarem bem os olhos, é que se consegue enxergar alguma coisa. O que eu fui encontrar nos meus subterrâneos! Ah, mas que rico dia! Isto é o céu ou lona pintada? Um azul assim, combinado com o azul do mar, lava os olhos e a alma de toda a escuridão.
de Aquilino Ribeiro
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home