Vladimir Korolenko # O Músico Cego
18 de fevereiro de 2007
Todo o homem é um anel na cadeia infinita das vidas que por ele passam, desde as profundezas do passado até às do futuro. E eis que um acidente fatal tinha querido fechar essas janelas dos elos a uma criança cega, cuja vida inteira devia ficar mergulhada numa escuridão completa.
Mas resultava daí, por isso, que estavam partidas todas as fibras pela quais a alma reage às impressões luminosas? Não, a sensibilidade interior à luz devia persistir e, apesar das trevas em que se debatia, esta existência era chamada a ser transmitida às gerações ulteriores.
A criança cega possuía uma alma humana, completa e normal, rica de todas as suas particulares características; e como toda a particularidade traz em si mesma o desejo da mais plena realização, a alma sombria do pequenito era habitada por uma aspiração insaciável de claridade.
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Sentia vivamente a escuridão que o rodeava como um mar. ... ... Já estava inquieto mais cedo ainda, antes do nascimento do filho; mas umas veleidades de esperança viviam até aí na sua alma, ao passo que agora tudo era diferente.... ...
E, bruscamente, esta frase curta:« A criança vê bem...», tinha mudado completamente a sua disposição de espírito. ... Teve a impressão de que as palavras do médico lhe deixavam um traço de fogo no cérebro. ...
E a seguir, imediatamente a este relâmpago, fantasmas estranhos iluminaram-se súbitamente diante dos olhos, que estavam extintos antes mesmo de ele nascer. Não podia distinguir se eram cintilações ou sons. Eram antes sons que nasciam milagrosamente, tomavam formas cuja natureza se não podia perceber e se moviam, se dispersavam e se uniam em raios de luz. Brilhavam como a cúpula do céu; rolavam como sol brilhante na abóboda etérea; vibravam como vibra o murmúrio e o segredar duma estepe nova e verde; balançavam-se como a folhagem das faias em meditação.
Tal foi o primeiro momento, curto como um pensamento. Só as impressões entrecortadas e misturadas deste momento se fixaram na sua memória. Tudo o mais esqueceu ele em seguida. Mas não se cansava de afirmar que tinha visto durante esse instante.
Era absolutamente impossível saber o que ele tinha visto, como tinha visto e se, na realidade, vira alguma coisa. Alguns asseguravam que isso era impossível, mas ele insistia que tinha visto o céu e a terra, a mãe, a mulher e o tio Máximo.
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Dir-se-ia que um estrondo terrível retumbava por cima da multidão e que todos os corações tremeram, como se Pedro lhes tivesse tocado com os seus dedos vivos e rápidos. Apesar de ele ter acabado de tocar, a assistência continuava a guardar o mais profundo silêncio.
O tio Máximo baixou a cabeça e pensou: «Sim, ele vê. Ele substituiu os seus sofrimentos egoístas, cegos e insaciáveis por uma verdadeira noção do que é a vida. Já sente a ventura e a desgraça humana. ... ...
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E assim começou o músico cego.
in "O Músico Cego"
de Vladimir Korolenko
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