Maria Aliete Galhoz # Mulher Com Menino Nos Braços
23 de julho de 2006
...Aconteceu assim e nem sequer é um conto.
... ... O apontamento que tenho é desse dia, reli-o, senti-o vivo e dá-me vontade de contá-lo assim mesmo, porque hoje eu já não escrevo bem daquela maneira, mas não importa, aqui a literatura é o menos, o mais é que se passa por vezes tanto tempo sem um gesto de fraternidade que somos desertos secos onde não cai chuva, e nós precisamos de irmãos como o nosso corpo de pão ou então a vida é morta em nossa vidas.
... ... Sob a protecção precária das telhas sublinhadas e de um jasmim do cabo todo aberto em flores amarelas, a presença da mulher com três crianças. Um bebé embrulhado em trapos limpos, que tinha nos braços. Dois meninos pequenos sentados a seu lado e que comiam pão a grandes dentadas sôfregas que quase pareciam felizes. Vieram ao meu encontro os olhos dos meninos com sua curiosidade respondendo à minha sem mal nem medo. Depois foi a mulher fitando-me de outro mundo, com aquela força de inocência pisada e que se fica como um pasmo admirado em certas vidas.
... ... Fitei-lhe os olhos que me fitaram também, azuis, de um puríssimo azul, com sua névoa luminosa de quem aprendeu lágrimas caladas. Sorriu-me e não sei que lhe fez sentir a urgência necessária de ser generosa comigo. A resposta angustiada dos meus olhos escondeu-se no gesto de me curvar para lhe acarinhar os filhos. «Quer comprar alguma coisa?» Apenas as bugigangas misturadas do comércio de quem não sabe ainda, de quem não é capaz de mendigar.
... ... Abri a minha mão no canto onde as moedas faziam um pequeno troco magro. Ela não protestou nem agradeceu, deixou-me escolher, desajeitada, a minha compra irrisória. Corei. Os seus olhos fitaram-me de novo com seu azul magnífico, avaliaram-me toda, um sorriso abriu-lhe uma vivacidade no rosto. Remexeu num saco que tinha ao lado, tirou qualquer coisa lá de dentro, limpou na manga do casaco, pôs-me na mão, «isto sou eu que ofereço à senhora». Um espelhinho redondo com sua orla de plástico vermelho, ingènuamente feio. Fechei a mão sobre ele.
... ... Lembro este nada que se passou com a consciência de uma cobardia pesando sobre mim e ao memso tempo com a comoção humilde de quem viveu um milagre.
...Aliás já mo disseram com a brusquidão dos amigos certos «você é traidora». Perguntei porquê, todos nós queremos uma estimativa de maior valia, é humano também. A resposta foi só «porque sabe». Calei-me, já nada tinha a argumentar, a verdade às vezes obriga-nos ao respeito de que ao menos se sofra calado.
...Quem és tu para me chamares de irmã?
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home